Artistas de São Paulo falam sobre a criação da graphic novel neste sábado, durante evento do Campão Cultural
Na graphic novel “O Filme Perdido” (Quadrinhos na Cia, 2023), Cesar Gananian (roteiro e diálogos) e Chico França (arte) mergulham na história da sétima arte para resgatar a figura do francês visionário Louis Le Prince, que filmava imagens em movimento antes dos irmãos Lumière ou de Thomas Edison.
Dupla de São Paulo fala sobre a criação deste álbum tão seminal e de forte impacto visual neste sábado, às 16, horas, no Museu da Imagem e do Som
O que apresentarão na palestra deste sábado?
Cesar: Será uma viagem pela história do cinema e como esses filmes nos influenciaram no texto, no desenho, design de páginas, cores e até no tipo de fontes utilizado.
O que levou à criação de “O Filme Perdido”?
Cesar: A ideia surgiu de uma epifania. Imaginei um filme coletivo, feito ao longo de cem anos por diferentes cineastas de épocas e lugares distintos. Cada um representando um movimento cinematográfico. E isso iria influenciar na forma e conteúdo de cada capítulo-cena. Fiquei eletrizado com essa ideia e só faltava a história. Sobre o que seria esse filme centenário? Pensei que a resposta estaria no fundador dessa empreitada que eu tinha imaginado, alguém do pré-cinema que, no início do século 20, teria dado a largada desse filme coletivo.
Pesquisando sobre pioneiros do cinema, encontrei um inventor chamado Louis Le Prince, que, antes dos Irmãos Lumieres e do Thomas Edison, já estava desenvolvendo uma câmera cinematográfica. Mas quando estava prestes a estrear sua invenção, desapareceu num trem e nunca chegou em Paris. Resolvi misturar essa história real com toda a fantasia que eu tinha imaginado. E depois de dez anos de trabalho, cinco escrevendo e cinco desenhando pelo Chico França, conseguimos lançar pela Companhia das Letras.
Cineastas como Rogério Sganzerla (1946-2004) fizeram filmes sobre a arte dos quadrinhos. Você fez uma HQ sobre o cinema. Como vêem essa dobradinha?
Cesar: Que legal você trazer o Sganzerla! Amo os documentários dele (“História em Quadrinhos” e “Quadrinhos no Brasil”, ambos de 1969. Assisti muito tempo antes de começar a elaborar esse livro. Acho que a relação entre cinema e quadrinhos sempre foi promíscua, digamos assim. Will Eisner (1917-2005), revolucionário dos quadrinhos dos anos 40, bebeu muito de Orson Welles (1915-1985), Hitchcock (1899-1980) e de todo cinema noir. Jean-Luc Godard (1930-2022) com seu filme “Alphaville” (1965) foi o contrário, mergulhou nas HQs de ficção científica.
Acho que nunca pensei num público específico para o filme perdido. Acho que qualquer pessoa que tenha interesse por arte, narrativas e uma mente aberta pra se surpreender. Cada capítulo foi feito num material e estilo diferente para representar um movimento cinematográfico. Temos carvão, aquarela, colagem e até massinha!
O que tem ouvido de quem já leu?
Cesar: Fico muito feliz quando alguém que leu começa a ir atrás de mais filmes e acaba descobrindo os tesouros escondidos que encontramos ao longo do processo. A obra é sobre nosso amor ao cinema e passar isso para outras pessoas sempre foi meu maior objetivo.
Como se deu o processo de pesquisa e também a seleção das informações que manteve no roteiro e do que optou por excluir?
Cesar: Durante o processo, vi 300 filmes e li uns 20 livros. Foi intenso mas maravilhoso. Eu queria muito ouvir dos próprios criadores e críticos do país dos filmes de origem seus pensamentos sobre o cinema. E isso me influenciou em cada palavra escolhida, em cada personagem criado. Depois do roteiro pronto, filtrei uns 50 filmes e o Chico França mergulhou neles para além dos meus resumos dos livros encontrados. Também buscamos referências em outras áreas além do cinema: artes plásticas, design, música.
Como se deu a parceria de vocês e como definiram as linhas gerais do tratamento visual?
Cesar: Somos amigos de escola e mesmo na vida adulta já tínhamos inúmeras parcerias. Mas nunca em quadrinhos. Apenas falávamos sobre isso. E quando nasceu a ideia, a parceria foi perfeita. Sabíamos que teríamos que experimentar muito, pesquisar muito e ambos viam isso como uma grande oportunidade de nos desenvolvermos como artistas. Era uma relação muito próxima, conversávamos quase todos os dias durante os cinco anos que o Chico passou desenhando.
Chico: Diria que tivemos uma parceria muito afinada, que foi ganhando ainda mais fluidez ao longo do tempo. A cada capítulo eu mergulhava nos filmes e tentava me embeber da atmosfera daquele movimento cinematográfico sobre o qual me debruçava. Era o primeiro passo para, em seguida, e junto com o Cesar, decidirmos qual a técnica e que material combinava para criar os aspectos visuais que melhor condiziam com as referências do cinema.
Nas nossas reuniões quase diárias decidíamos quadro a quadro a página, pensando angulação, atuação dos personagens etc. O fato de serem duas cabeças criando juntas potencializa demais as possibilidades.
Poderia comentar sobre essas possíveis outras inspirações e influências para além do universo da arte sequencial?
Cesar: Sou muito influenciado pela literatura fantástica de Jorge Luis Borges (1899-1986). Foi ele quem falou que talvez a humanidade tenha escrito apenas um grande livro feito por milhões de escritores. Também fui influenciado por “Ulysses” (1920), de James Joyce (1882-1941), onde ele se utilizou de diferentes linguagens para cada capítulo de seu livro.
A HQ dos EUA termina sendo a que mais aparece no cenário internacional. Há trabalhos ou autores de outros países que lhes chamam a atenção?
Chico: O cenário do quadrinho nacional me parece muito prolífico, com muitas publicações interessantes e nomes novos que aos poucos vão rompendo o nicho. Tenho muito ainda para conhecer e ler, mas entre os que mais me atraem estão certamente Marcelo D’Salete, Eloar Guazzelli, Luli Penna. E estrangeiros, os clássicos (Guido) Crepax (1933-2003), (Alberto) Breccia (1919-1993) e Marjane Satrapi. Para citar alguns.
Talvez a partir de “Daytripper” (Fábio Moon e Gabriel Bá, 2010), a HQ brasileira atingiu um outro patamar, não só de reconhecimento, mas também quanto à criação e à confecção em si. Como vê a produção e o mercado de talentos do país hoje?
Cesar: Talento é o que não falta. Acredito que falta a grande mídia trazer mais sobre essas obras. Existe ainda um pensamento muito arcaico de que quadrinhos é apenas coisa de super heróis, quando, desde o início do século 20, vemos obras avassaladoras feitas em quadrinhos.
Chico: Esses talentos estão por aí, muita gente produzindo de forma independente, sem muita chance de poder viver da sua arte, mas às duras penas perseverando na criação. Concordo com o Cesar. Os quadrinhos são ainda uma linguagem pouco valorizada, tida infelizmente como inferior ao texto literário ou menos rentável e engajadora de atenção do que outras formas de expressão típicas do entretenimento.
Ainda assim, existe sim alguma mudança por parte de alguns setores que passam a investir, digamos, nos quadrinhos com status de livro, histórias longas, graphic novels. E, surpreendentemente, editoras grandes têm cada vez mais aberto espaço para isso.
E o cinema brasileiro? O que diriam da produção contemporânea?
César: Diria que é plural como nosso próprio pais é!
Vocês me diriam filmes e HQ’s preferidas?
Cesar: Acho que prefiro responder mais por autores do que pelas obras. Nas HQs, meu autor preferido é o Alan Moore. Já li tudo que ele escreveu e me inspira demais. No cinema, diria Orson Welles, Sergei Parajanov (1924-1990), Jean-Luc Godard, Maya Deren (1917-1961), Sganzerla, Kubrick (1928-1999), Abbas Kiarostami, Bergman (1918-2007), Murnau (1888-1931), Chaplin (1899-1977)… É gigante a lista. Diria que vou estar sempre do lado daqueles que buscam reinventar, experimentar sem medo do risco.
Chico: Tenho gostado bastante de HQs documentais, como os livros de Joe Sacco e “Uma Vida Chinesa”, de Li Kunwu e P. Ôtié. No cinema, os filmes de Kiarostami e Akira Kurosawa (1910-1998). Pretendo rever e rever ainda algumas vezes na vida.