Artista carioca viveu em Campo Grande por 24 anos, com trabalhos sobre a fauna e a flora de Mato Grosso do Sul; abertura será hoje, às 19h, com show de afrojazz comandado por Jorge Aluvaiá
“Sempre teve flores e bichos, mas ele foi ampliando esse olhar nos últimos anos, quando já estava muito mais próximo de Mato Grosso do Sul”, afirma a psicóloga Jacy Curado, idealizadora da mostra “Flores e Bichos: A Leveza na Arte de Galvão Pretto”, que pode ser conferida até 20 de junho, na Casa de Ensaio, com entrada franca. A abertura será hoje, a partir das 19h, ao som ao vivo de um repertório matizado no afrojazz sob o comando do percussionista Jorge Aluvaiá.
Quem visitar a mostra poderá conhecer uma das facetas mais celebradas do artista carioca, que se mudou para Campo Grande em 1999 e permaneceu na Capital até ser vitimado por um câncer, em janeiro de 2023. Entre pinturas, desenhos e outras técnicas, algumas que ele mesmo desenvolveu, Galvão retratou flores, frutos e ervas, além de répteis e aves, entre outros animais, apurando um olhar sobre a fauna e a flora de Mato Grosso do Sul em que, mais uma vez, sobressaem a pesquisa formal e o laboratório de materiais que marcam sua trajetória.
O Méier, na zona norte do Rio de Janeiro, é um bairro, assim como a Capital Morena, que tem a sua história atravessada pela cultura ferroviária, além das plantações de cana e dos engenhos que fazem o lugar ser lembrado no mapa da história do Brasil Colonial. O Méier também é onde foi inaugurado, em 1954, mesmo ano de nascimento do artista, o Cine Imperator, maior cinema da América Latina na época, onde hoje funciona o Centro Cultural João Nogueira.
Nesse caldo cultural, histórico e geográfico nasceu e cresceu o menino Ilacir Galvão dos Santos antes de ganhar o mundo. Já formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Galvão começa a expor e, entre Petrópolis, na região serrana do Rio, onde ganhou o primeiro prêmio em um salão de arte, e Campo Grande, onde se consagrou, com mostras individuais no Museu de Arte Contemporânea (Marco) e outros espaços, o engajamento e a densidade intelectual nunca nublaram seu humor, despojamento e sentido de leveza.
É por aí que vai a aposta da curadoria dessa primeira exposição em homenagem ao artista após sua partida, há pouco mais de dois anos. A alguns passos de um beija-flor ou de uma folha de araticum, o visitante tem a chance de ver descontraídos pequenos cães e ossos de tecido – ou um jacaré cor-de-rosa feito em uma técnica própria que foi inspirado no papel machê. Garças, piranhas, capivaras e vasos de flores também compõem o mundo silvestre que Galvão palmilhou e reviveu em seus mais de 20 anos de MS. São mais de 40 obras na mostra.
Casada com o artista durante todo esse tempo, Jacy vem maquinando a mostra desde o ano passado.
“Essa exposição não é a obra completa dele. É só uma pequena parte. Mas é o início de muitas outras que podem vir”, diz a psicóloga e professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. “Como Nietzsche dizia, a obra de arte nunca morre. Quando a gente tem um acervo, alguém tem que ficar responsável por esse acervo. E eu estou como fiel depositária desse acervo e a minha obrigação é fazer circular, fazer a obra do Galvão ter vida”, afirma Jacy.
“Ele falava que desde pequeno tinha um encanto pelo Pantanal, pelo cerrado, e aqui ele foi ampliando essa visão e foi retratando cada vez mais, se dedicando, inclusive no período da pandemia e em outros nos quais ele teve problemas de saúde. Temos várias obras feitas nesse momento. Eram momentos difíceis que ele fez se tornarem leves, como durante a produção dos cachorrinhos de confecção têxtil para não mexer em tinta. Estamos retratando mais essas fases que, acredito, trazem muita leveza a partir dessa visão”, conta a psicóloga.
CURADORIA
“Essa mostra apresenta uma das várias fases que o Galvão Pretto tem, e pegamos a leveza, que é justamente quando a gente sente que ele se enraizou mesmo como sul-mato-grossense e que tem os bichos do Pantanal e as flores do cerrado. Então, pensamos em uma cronologia que vai do último para o começo. Com isso, a gente quis demonstrar toda uma carreira que o Galvão fez e que chegou nessa última caminhada dele, em que veio toda essa leveza. Ele demonstra tudo isso através dessas flores e desses animais que, de repente, são brutos na forma, mas têm toda uma leveza do olhar próprio do artista”, diz a curadora Ilva Canale.
“Galvão tinha, como ele mesmo coloca e o que acho muito interessante, além da calma, que ele sempre passou, e de uma conversa até muito didática, porque ele também foi professor, e tudo isso, uma mente inquieta. A mente dele sempre estava a mil. As técnicas são muitas, tem umas que são até únicas. Tem uma que a gente acha que é um papier-mâché, mas feito a partir de um molde [de gesso]. É o molde que ele fez antes. Não tem aquela armadura somente em que se faz a própria técnica [do papel machê]. Ele fez uma técnica em cima”, prossegue Ilva.
“O que a gente vê nos animais, parece que eles são brutos, mas é um material superleve. Veremos também os moldes para que se tenha uma ideia dessa técnica. Nos desenhos, ele usa muito a técnica do pastel, usa muito o lápis cera, também a pintura, e a gente pode ver que o material que ele usa para transportar essa técnica é muito único. O que a gente pode observar é toda essa inquietude do Galvão Pretto dentro dessa criação intensa que ele mostra pra gente”, explica a escultora e arte-educadora, que viveu nos EUA por mais de três décadas.
BRINCADEIRA
“Fico muito contente, muito feliz de ter sido chamado para esse trabalho por Jacy, porque, nos últimos tempos, convivi bastante com Galvão. Não tanto quanto eu gostaria. Jamais pensei que ele fosse fazer uma passagem tão rápida. Depois da minha volta de Salvador [em 2022], a gente se aproximou mais, em encontros nas casas de amigos, e ele dizia: ‘Vai lá em casa, pega a sua bike e vai lá em casa’. Eu fui adiando, adiando, e quando vi o Galvão já tinha voado. E foi terrível, porque foi repentino”, lamenta o cenógrafo Haroldo Garay.
Responsável pela montagem e expografia da mostra, Garay fala do desejo de “aproximar o público dessa natureza que ele pintou, os pássaros, os animais do Pantanal. Estou brincando com isso, gostaria de fazer no chão, e estamos brincando com essa temática de colocar, assim, os bichos no chão ao lado do lago, da lagoa, na terra, na natureza. Vai ficar lúdico, e as crianças, mais que os adultos, e as crianças dos adultos, vão apreciar essa brincadeira do Galvão, porque ele se divertia pintando, trabalhando, que era o ofício dele”.
VISÃO DO ARTISTA
“O Galvão é muito caro pra mim em função da relação familiar mesmo e também fico muito feliz em termos mais um espaço em Campo Grande abrindo para a comercialização de obras de arte. Temos poucos espaços na cidade, e a Casa de Ensaio está reinaugurando esse espaço, que é a Galeria Lúcia Barbosa Martins, para que isso possa acontecer e seja acessível a um outro público, já que a Casa de Ensaio pega um outro público”, afirma a galerista Celeste Curado, que foi cunhada do artista.
“Faz sentido, para quem compra o quadro, o afeto. E quando o Galvão fez a sua leitura das aves e flores do Pantanal, tem o traço do artista, tem a visão dele. E ficaram muito belos esses trabalhos dele. Na outra exposição que a gente fez de flores do cerrado, foi um sucesso. É muito fácil ter nas suas paredes aquilo que você conhece. Tudo isso está muito próximo. O Pantanal é nosso vizinho aqui, e isso facilita para a comercialização das obras, nesse sentido”, diz Celeste.
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