Artigos e Opinião

ARTIGO

Daniel Nonohay: "É seu, é meu, é nosso: uma teoria sobre o capitalismo infantil"

Juiz do Trabalho

Redação

14/03/2017 - 02h00
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Quando a minha filha mais nova fez dois anos, aprendeu a dizer “é meu”. Ela vê o brinquedo que deseja, pega-o com as suas mãozinhas, traz para o peito, olha severamente para o interlocutor e sentencia:
– É meu!

Ela compreendeu como verbalizar a apropriação. Ela quer algo, toma-o e declara a sua propriedade. O doce? É dela. O celular na minha mão? É dela. Eu? Obviamente, sou dela também.

No início, achei um amor. Os pais se derretem com esses sinais de evolução. Essas microdemonstrações de tirania (as mesmas que, no filho dos outros, qualificamos geralmente como decorrentes de uma má educação por pais relapsos).

Por mais que façamos beicinhos de aprovação, em algum momento faz-se necessário ser pai e contrapor aquele argumento de propriedade.

– Filha, não é “teu”, é “meu”. Ou “é nosso”. Ou “é dela”. 

Ou, os mais complexos, “não é de ninguém” e “é de todos nós”.

E, assim, jogamos a criança num mar de incerteza; no mundo dos conceitos fluidos e antinaturais. No pequeno olhar, onde havia a certeza da posse, passa a existir a vagueza da incompreensão, a raiva pela desapropriação e, por fim, a firmeza da resistência.

Eu nunca expliquei para ela o que significava “é meu”. Foi um conceito que ela adquiriu sozinha, pela mera observação da prática ao seu redor. Demorei umas duas semanas explicando o significado de “é teu”. Não é tão difícil, pois é apenas um “é meu” ao contrário. Claro que, às vezes, ela não concorda com o “é teu” ou finge se esquecer de que ele existe, mas isso é outra história.

Estou, contudo, há mais de um mês tentando explicar o significado de “é nosso” e nem sequer sei por onde começar com “não é de ninguém” e “é de todos nós”. São conceitos difíceis, abstratos e sofisticados, que foram desenvolvidos para mentes um pouco mais elaboradas.

E isso me faz pensar um pouco sobre o momento político que estamos atravessando.

Não vou cair na armadilha óbvia e primária da dicotomia entre “esquerda x direita”, “capitalismo x socialismo” ou qualquer outro desses rótulos fáceis e malcompreendidos.

(Se você precisa me rotular, se não pode conviver nas zonas cinzas e sente absoluta necessidade de me colocar em algum compartimento mental identificado com grandes etiquetas, pode escrever na minha “capitalista solidário”. “Não, isso não existe!”, acusaram alguns amigos próximos ao ler a crônica. Acho que existe, sim, embora seja uma espécie em extinção pelo desuso.)

Vou dizer, apenas, que a capacidade de se apropriar das coisas que necessitamos é inerente e foi essencial para a sobrevivência dos primeiros humanos. A capacidade de dividir, porém, permitiu nossa evolução em sociedade. A segunda veio quase junto, mas, mesmo assim, não de forma concomitante com a primeira.
Para uma sociedade sair da barbárie (ou para não retornar a ela) e se desenvolver, são necessários sentimentos e ideias coletivas de empatia, alteridade e solidariedade. Assim como educamos nossas crianças a não fazer mal aos outros, a ajudar o próximo e a respeitar as diferenças, temos de fazer um exercício conjunto e adulto destas qualidades.

Esses sentimentos e ideais traduzem-se em providências simples e com as quais a maioria concorda. Não deixar outros morrerem de fome. Educar. Permitir que outras pessoas saiam da ignominiosa pobreza. Estabelecer uma igualdade de direitos básicos entre todos. Respeitar as minorias. Respeitar as diferenças individuais. E assim por diante.

Outras providências ainda se fazem necessárias, mas não são tão simples. Como tributar grandes fortunas  ou heranças, por exemplo, a fim de impedir que famílias vivam gerações com base exclusivamente na renda. Ou para evitar que 1% da população tenha a riqueza equivalente à de 50%.

Aí, a discussão é obliterada pela falta de entendimento. E, não bastasse a incompreensão, aqueles a quem não interessa esta conversa jogam sobre ela um manto de ódio e de medo. Voltam os rótulos. Óbvio que nada de produtivo pode ser extraído de um debate público nestes termos.

E continuamos todos assim, com nossas coisas junto ao peito, defendendo de forma infantil o que “é meu”.

EDITORIAL

O sistema de transporte faliu?

Mais grave ainda é a ausência, até aqui, de uma participação ativa e contundente de instituições que podem e devem agir de ofício diante de um flagrante caso de interesse público

15/12/2025 07h15

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A crise do transporte coletivo em Campo Grande chegou a um ponto que ultrapassa o desconforto cotidiano do usuário e passa a provocar perplexidade institucional. Um serviço essencial, que garante o direito de ir e vir, simplesmente ameaça parar, enquanto parte das instituições que deveriam atuar na defesa do interesse público assiste a tudo à distância, como se o problema fosse apenas administrativo ou financeiro.

O transporte público não é um favor concedido por concessionários nem um serviço opcional do poder público. Trata-se de uma obrigação legal e constitucional, que deve ser prestada de forma contínua, adequada e eficiente.

Ainda assim, a combinação de atrasos no pagamento de subsídios por parte do Município e crises financeiras alegadas pela concessionária – que, diga-se, precisa ser muito mais transparente sobre sua real situação – resultou na convocação de uma paralisação marcada para hoje.

Esperamos, sinceramente, que ela não ocorra. Mas o simples fato de ser cogitada já é um sinal grave de falência do modelo atual.

Mais grave ainda é a ausência, até aqui, de uma participação ativa e contundente de instituições que podem – e devem – agir de ofício diante de um flagrante caso de interesse público. O silêncio do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública causa estranheza.

Estamos falando de um serviço que afeta diretamente milhares de trabalhadores, estudantes, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade social. Não há como tratar esse impasse apenas como um conflito contratual entre prefeitura e concessionária.

Essas instituições existem justamente para atuar quando direitos coletivos são ameaçados. Têm instrumentos legais para exigir informações, fiscalizar contratos, mediar soluções e, se necessário, responsabilizar gestores e empresas.

A crise do transporte público é um típico caso em que a atuação preventiva e firme poderia evitar danos maiores à população.

Esperamos, portanto, uma atuação urgente dessas instituições na mediação do impasse, antes que a cidade seja penalizada com a interrupção de um serviço vital. E, se o conflito acabar inevitavelmente judicializado, que o Judiciário aja como deve agir: com celeridade, sensibilidade social e foco no interesse público, e não apenas na letra fria dos contratos.

Afinal, quando um sistema essencial entra em colapso e as instituições se omitem, a pergunta deixa de ser retórica e passa a ser inevitável: o sistema de transporte público faliu ou falharam as instituições que deveriam garantir o seu funcionamento? Instituições existem para funcionar – e precisam fazê-lo de fato, especialmente quando a cidade mais precisa.

ARTIGOS

Às portas do Judiciário - contratos bancários fraudulentos

Embora exista regulamentação para a contratação na modalidade à distância, por resolução do Banco Central, as instituições bancárias e financeiras, em geral, não adotam as diretrizes legais

13/12/2025 07h45

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Após as fraudes praticadas contra aposentados, pensionistas e beneficiários do INSS terem vindo à tona, cresceu enormemente o número de demandas judiciais que visam ao cancelamento de contratos de empréstimos, principalmente os realizados de forma virtual.

Embora exista regulamentação para a contratação na modalidade à distância, por resolução do Banco Central, as instituições bancárias e financeiras, em geral, não adotam as diretrizes legais, gerando contratos nulos por natureza, os quais acabam sendo invalidados judicialmente.

Tratando-se de situações que envolvem idosos, os atos abusivos praticados pelos bancos provocam, por força do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003), maior reprimenda judicial, sendo passível de apuração não só no âmbito cível, como também no criminal, tendo em vista a proteção especial em razão da vulnerabilidade presumida.

Contudo, embora a regra seja clara, temos nos deparado com situações em que vítimas de fraudes têm sofrido não só com os descontos promovidos a título de parcelas mensais não contratadas, como de serviços não autorizados, que torna indigno o valor líquido das aposentadorias, benefícios ou pensões a receber.

Em boa hora, felizmente, o Judiciário tem determinado o cancelamento desses contratos, condenando as instituições que assim atuam não só à restituição dos valores ilegalmente descontados, mas ao pagamento da devida indenização por danos morais, decorrente da lesão causada aos direitos de personalidade, amplamente consagrados na Constituição Federal.

O que atordoa é o percurso que a vítima dessas situações percorre até o momento em que se livra de vez do infortúnio das cobranças.

É que, embora seja cabível, juridicamente, um pedido antecipado de decisão que suspenda os descontos que vão incidindo sobre o já tão comprometido valor a receber, nem sempre esse pleito é concedido ou o é de forma tardia, o que vai pondo a vítima dessas fraudes em situação financeira mais delicada.

O ideal seria que a regra fosse no sentido de se determinar judicialmente a suspensão imediata dos descontos ilegais, já que a parte mais vulnerável (que é sempre o consumidor) não dispõe de meios econômicos para reverter uma situação de miserabilidade a que pode chegar, diferentemente dos afortunados bancos.

No entanto, para que as tutelas judiciais provisórias sejam concedidas, exige-se o preenchimento de requisitos legais mínimos, previstos na Lei Processual Civil, quais sejam: probabilidade do direito; perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo; e reversibilidade dos efeitos da decisão.

Nos casos em que o banco não comprova a pactuação por contrato firmado ou quando a suposta contratação se deu de forma virtual, mas não se comprovou idoneidade da assinatura eletrônica, deve o negócio ser cancelado.

Caso haja comprovação de má-fé por parte do banco, impõe-se a restituição dos valores descontados em dobro. Não se comprovando, entretanto, o que é mais incomum, deve o valor ser restituído na modalidade simples, o que significa devolver somente o valor cobrado.

Para a condenação ao pagamento de indenização por danos morais, entretanto, não se exige nessas situações, por exemplo, que tenha havido negativação do nome da vítima nos serviços de proteção ao crédito, mas a própria má-fé já valida a condenação nesse sentido.

Ainda é árdua a luta dos que sofrem com esses abusos, todavia, a Defensoria Pública é uma forte aliada do consumidor, especialmente os mais vulneráveis.

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