Foto: Bruno Henrique
Os polegares de Jorge Arruda, 42 anos, conhecem os caminhos e, numa habilidade que dispensa a visão, atingem os pontos exatos dos pés dos pacientes, aliviando-lhes a dor. As mãos, que deslizam firmes sobre solas de pés, já carregaram tijolos, seguraram martelos, subiram paredes... O processo de mudança profissional e melhoria de renda se iniciou após a perda de visão: o pedreiro se tornou massoterapeuta e passou a enxergar um futuro que não pode ser encerrado em quatro paredes, como as das casas que construía.
Assim como Jorge, outras pessoas com deficiência visual, empurradas pelo preconceito para fora do mercado de trabalho formal, acabam se tornando empreendedoras e, como resposta ao senso comum, passam a se destacar em suas atividades. Buscam ser notadas não pelo que lhes falta, mas pelo que têm a oferecer. “Precisamos que observem nossas possibilidades e parem de observar os nossos limites”, traduziu essa contradição a pedagoga Telma Nantes de Matos, presidente do Instituto Sul-Mato-Grossense para Cegos Florivaldo Vargas (Ismac) e integrante da direção da Organização dos Cegos do Brasil (ONCB).
As possibilidades de Jorge são observadas por quem já passou por suas mãos. “Estava travada, com muita dor nas costas. Fiz uma sessão na quarta-feira. Na quinta, já estava maravilhosa”, afirmou uma cliente de 55 anos, que não quis ser identificada.
A rotina do massoterapeuta é intensa: trabalha diuturnamente para atender os atuais 30 clientes fixos e outros que o buscam vez e outra. Há oito meses, aprimorou com um massoterapeuta chinês a reflexologia podal, técnica de massagem nos pés para liberação de toxinas pelo sangue e cura de dores no corpo. O trabalho lhe assegura renda muito superior a seu salário de pedreiro e lhe permite pagar as faculdades dos dois filhos, que estudam Música e Engenharia Civil. Ele também tem projeto para iniciar a faculdade de Fisioterapia no próximo ano. “Assim serei completo”, brinca. Quando era pedreiro e enxergava, seus sonhos eram quase invisíveis. “Antes, nunca imaginava que pudesse parar de assentar tijolo”.
Acidente de trabalho
E foi assentando tijolo que Jorge perdeu a vista esquerda há 13 anos. Uma lasca da parede com um pouco de massa com brescal (produto químico) lhe perfurou o olho. As três cirurgias não resolveram.
Colocou uma prótese e continuou trabalhando na construção civil por mais dois anos, quando perdeu a visão do olho direito. Dessa vez, por capricho raro do sol: Jorge estava à beira de uma piscina, quando olhou diretamente no reflexo de um raio refletido na água e sentiu o olhar ofuscar. O nevoeiro que se formou em sua vista não mais o abandonou. Ele ficou, então, com apenas 15% de visão direita. “O chão fugiu dos pés”, lembra-se. E perguntou na ocasião: “Por que comigo?”
A recuperação da autoestima contou com a ajuda do Ismac, onde aprendeu o necessário para viver com a deficiência visual. “Hoje eu me sinto uma pessoa feliz”, afirma Jorge, que passou a enxergar bem o próprio talento após se limitar a ver sombras de tudo que lhe distancia a mais de um metro.
Corretor é obrigado a mostrar que é capaz de fazer bem o seu trabalho
Foto: Gerson Oliveira
A memória do corretor de imóveis Marcelo Senzano, 50, causa inveja a qualquer elefante. “Os clientes ficam admirados por eu conduzi-los certinho aos imóveis”, conta Senzano, que também trabalha com venda de títulos de um clube de lazer de Campo Grande e ajuda a mulher no caixa do restaurante da família. “Quando enxergava tinha que matar um leão por dia. Agora tenho que matar dois: convencer as pessoas da minha capacidade e fazer bem o meu trabalho”, metaforiza. E brinca: “A cota aumentou”.
Marcelo conta que ficou cego, em 2006, por causa de ausência de tratamento da diabetes. Após um ano de hibernação em si mesmo, Marcelo resolveu buscar ajuda e chegou ao Ismac. Passou pela reabilitação e hoje lida sem grandes problemas com a deficiência visual.
Durante a perda da visão, sua memória, que já era boa, segundo ele, tornou-se espetacular. A geografia da cidade mora em sua cabeça. “Quando minha mulher dirige, eu guio ela. Digo ‘vira à esquerda, na próxima pega à direita’. E a gente chega direitinho”, conta.
A boa memória é aliada da atividade de corretor. Antes de oferecer um imóvel, vai conhecê-lo com um colega corretor. “Ele me fala como é a casa, se o acabamento é de primeira... Eu guardo tudo na memória”. Também memoriza o trajeto. Assim, consegue guiar o cliente até o imóvel e tecer um bom discurso de vendedor. Já fechou bons negócios assim.
No topo de seus projetos, Marcelo ostenta a publicação de um livro. “Quero contar para todos como é a realidade quando surgem as restrições. Quero mostrar que perder a visão não é o fim, mas um recomeço”, adianta Marcelo o conteúdo de seu livro.
Policial quer abrir empresa de transporte
Foto: Bruno Henrique
O mercado de trabalho formal é cego frente à capacidade dos deficientes visuais. A sobrevivência, em muitos casos, passa a ser procurada, então, na informalidade. “Procuramos a informalidade por despreparo das pessoas, que não veem nossa competência”, afirma Eduardo Minari Higa, 47, que está no processo de abertura de uma empresa de transporte logístico com a ajuda do Sebrae.
Eduardo conta que participa do projeto “Nascer Bem” do Sebrae. O policial aposentado, que ficou cego em acidente de trabalho, projeta, com seu negócio, reduzir um problema de trânsito existente nas áreas centrais: a presença de caminhões que entregam produtos para lojas travando o fluxo de veículos. “Minha ideia é oferecer o serviço de distribuição de produtos em carros ou motos”, afirma.
Para aprofundar seus conhecimentos, Eduardo faz curso superior de Gestão Comercial. Eduardo sente que, após a perda da visão, quis produzir ainda mais. “Nossa capacidade laboral aumenta”, avalia.
Desigualdade em números
Os deficientes visuais precisam de muito esforço. Menos para vencer a deficiência física e mais para superar a desvalorização do mercado de trabalho. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dimensionam essa desvalorização. De acordo com o último Censo, em Mato Grosso do Sul, havia 198.358 cegos trabalhando em 2000 (ano de referência do último Censo divulgado). Desses, 54% recebiam entre meio a dois salários mínimos. A situação da mulher é ainda mais precária.
Mesmo com os esforços para se destacar, os cegos recebem baixos salários, um dos fatores que fazem do empreendedorismo a via, talvez única, de crescimento financeiro. Conforme o IBGE, 84.997 cegos trabalhavam em 2000, sendo 53.311 homens e 31.687, mulheres.
O rendimento, para a maioria, não passava de dois salários - eram 46.207 nessa faixa de renda. A situação da mulher, é ainda pior. A maioria delas (9.568) tinham que viver com apenas um salário mínimo.
Foto: Bruno Henrique
A discriminação à mulher cega se evidencia ainda mais se considerado o componente escolaridade. Apesar de receberem menos, elas estudam mais. Dos 148.482 cegos alfabetizados, 52% eram mulheres e 48%, homens.