Pacientes trocavam fraldas, vestiam e davam banho nos colegas mais debilitados, além de trabalhar na cozinha sem remuneração
Relatório baseado em uma inspeção feita na Clínica de Reabilitação Os Filhos de Maria, alvo de denúncias graves de tortura e demais irregularidades, revelou que os internos da Comunidade Terapêutica precisavam cuidar uns dos outros por falta de profissionais.
O material foi elaborado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), do Governo Federal.
Conforme consta no documento, além da situação precária do alojamento onde os internos eram mantidos, que tinha mobílias velhas, pouco espaço e falta de acessibilidade para deficientes e pessoas com comorbidades, havia também precariedade no atendimento oferecido pela "clínica".
Devido à falta de uma equipe técnica para fornecer os cuidados necessários, os acolhidos começaram a cuidar uns dos outros, oferecendo suporte àqueles que apresentavam maiores dificuldades de locomoção.
"Observamos também que os alojamentos não possuíam banheiros adaptados para cadeirantes, pessoas com deficiência ou comorbidades, o que compromete a utilização segura dessas instalações. Alguns acolhidos acabaram assumindo o papel de cuidadores dos mais debilitados, como por exemplo, idosos ou cadeirantes que necessitam de cuidados especiais, como troca de fraldas, auxílio para vestir-se e para tomar banho. Isso ocorre porque a clínica não conta com uma equipe técnica para fornecer esses cuidados", diz trecho do relatório.
Degradante e insalubre
O MNPCT definiu o ambiente de convivência dos pacientes como "degradante e insalubre". Conforme descreve o órgão, a estrutura é composta por dois prédios: o principal, que abriga portaria e o setor administrativo, e o secundário, que contém alojamentos e enfermaria.
A clínica também conta com uma academia, quadra, horta, piscina e área de manejo de frutas.
Apesar da estrutura, o estado dos ambientes era insalubre e degradante, porque além de estarem sujos, apresentavam forte mau cheiro no momento da inspeção.
Os espaços também eram mal iluminados e sem ventilação.
Nos quartos, os colchões e lençóis estavam rasgados, e uma das camas estava suja de urina.
As mobílias das camas eram em maioria do tipo beliche de madeira, e estavam em péssimo estado de conservação.
"Em todos os alojamentos visitados foi possível constatar que o tamanho dos espaços era incompatível com a quantidade de pessoas internadas", aponta relatório.
Também chamou a atenção durante a inspeção o fato de os alojamentos ficarem no andar superior da clínica, que só pode ser acessado através de uma escada, que não possui segurança adequada e faixas antiderrapantes no chão.
Alguns internos mencionaram já terem sofrido acidentes na escada, principalmente enquanto estavam sob efeito de medicação.
Os pacientes também não tinham armários individuais, sendo todos os itens armazenados em uma mesma estante, disponível para acesso de qualquer pessoa.
Cozinha
Os internos recebem três refeições por dia. O almoço é servido às 11h, acompanhado pela administração de medicação. Como muitos internos ficam sonolentos devido aos medicamentos, é permitido descanso a partir das 14h30. O jantar é servido às 18h, sendo sempre sopa de legumes e macarrão.
Conforme consta no documento, os pacientes se queixaram sobre a quantidade insuficiente de comida, presença de alimentos estragados e frutas e verduras com bichos. Além disso, foi relatado que uma parte dos hortifrutis havia sido descartada pouco antes da chegada da equipe de inspeção no local.
"Observou-se também a monotonia alimentar, com o mesmo cardápio sendo servido todos os dias, e a qualidade da comida é considerada péssima, sendo definida pelos internos como lavagem", menciona o órgão.
Segundo os internos, a alimentação é servida com uma alta proporção de carboidratos e pouca proteína, sendo que muitas vezes a refeição consiste apenas em “puchero”, molho de carne ou uma grande quantidade de salsicha.
As refeições são preparadas em uma cozinha na própria instituição e pelas próprias pessoas internadas, sem o acompanhamento de um profissional contratado, como um nutricionista.
Na data da inspeção, a equipe encontrou no local três acolhidos preparando o almoço que seria servido aos demais residentes.
"A porta da cozinha e a única janela do local estavam fechadas. Embora houvesse um ventilador e pequeno exaustor, a cozinha não possuía um conforto térmico adequado em razão da temperatura elevada", constatou a inspeção.
Um dos internos, que se identificou como um dos seis cozinheiros que trabalhavam sem remuneração no local, relatou que, alguns dias antes da visita, a despensa de alimentos havia sido alagada por água suja proveniente do banheiro localizado no piso superior, e que os produtos tiveram de ser consumidos apesar da exposição à água suja.
"Segundo informações, pacotes de arroz, feijão, macarrão e café ficaram encharcados de água suja, apresentando aspecto de podres. O dono da clínica não permitiu o descarte desses alimentos e ordenou que fossem cozinhados dessa forma, resultando em vários dias em que as pessoas internadas consumiram esses alimentos, possivelmente, contaminados", menciona o relatório.
Descarte de lixo
Além dos problemas já mencionados, constatou-se que no terreno da instituição havia uma quantidade considerável de entulhos, restos de madeiras e equipamentos, demonstrando uma inadequação no descarte correto de resíduos. Também foram encontrados restos de alimentos estragados descartados incorretamente.
Inquérito Civil
Após as denúncias de tortura e o resgate de 95 pacientes que faziam "tratamento" no local virem à tona, o Ministério Público Estadual (MPE) instaurou Inquérito Civil para apurar as ações adotadas pela Prefeitura de Campo Grande com relação à Comunidade Terapêutica Filhos de Maria.
Em julho deste ano, a Defensoria Pública do Estado havia solicitado que o MPE apurasse a regularidade do funcionamento da comunidade terapêutica, apontando que "a entidade tem realizado de modo desautorizado internações involuntárias e compulsórias".
O pedido veio logo após um paciente morrer enquanto estava sob cuidados da entidade.
Morte de Gabriel
No relato feito à Defensoria Pública do Estado (DPE), a irmã da vítima, Gabriel Nogueira de Souza, contou que ele tinha diagnóstico de esquizofrenia, e que em decorrência do uso de drogas, começou a apresentar piora no quadro de saúde mental. Por isso, o internou na Comunidade Terapêutica "Os Filhos de Maria", que ofertava, além do tratamento medico e multidisciplinar, a possibilidade de internação sem o consentimento do paciente.
Segundo ela, durante a internação, Gabriel não podia manter contato com a família, com exceção para os dias e horários específicos estipulados pela "clínica". O contato era sempre monitorado, e feito apenas por telefone. Ela lembra também que, após um mês de internação, tentou falar com o irmão, mas foi informada de que Gabriel estaria gripado e com dores no peito.
Pouco mais de uma semana depois dessa tentativa de contato, ela foi informada por uma enfermeira que Gabriel teria "entrado em surto psicótico" durante a noite, e por isso a dose do medicamento havia sido aumentada para que ele se acalmasse.
Após isso, teriam verificado que o paciente estaria sonolento, com saturação e batimentos cardíacos oscilando, e o teriam levado para a Unidade de Pronto Atendimento Nova Bahia. Na UPA, Gabriel morreu.
Segundo laudo, a morte foi causada por "septicemia secundária a foco pulmonar e cardíaca, empiema pleural e pericardite purulenta".
A septicemia - conhecida por sepse - é uma doença grave, que ocorre quando substâncias químicas liberadas na corrente sanguínea para combater uma infeção desencadeiam inflamação em todo o corpo.
O empiema pleural é o acúmulo de pus na cavidade pleural, localizada entre os pulmões e a parede torácica.
Já a pericardite purulenta é uma doença rara e fatal, causada por infecção no espaço pericárdico, a cavidade que se encontra entre as duas camadas da membrana que envolve o coração.
Ou seja, os sintomas de Gabriel foram negligenciados por pelo menos uma semana, e considerados um "surto psicótico" pelos profissionais da comunidade terapêutica.
Caso grave em MS
A inspeção da Clínica de Reabilitação Os Filhos de Maria se deu no contexto da Missão do MNPCT ao estado de Mato Grosso do Sul, que ocorreu entre os dias 20 e 25 de outubro de 2024.
Segundo o órgão, tendo em vista a gravidade do cenário encontrado na instituição, foi elaborado um relatório prévio, sintético e descritivo para apurar os indícios de crimes e ilícitos constatados no local e na salvaguarda das vítimas e denunciantes, possibilitando a publicização e controle social sobre o caso. Mas, posteriormente, será concluído um relatório mais aprofundado sobre o caso.
MNPCT
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura tem como função precípua a prevenção e combate à tortura a partir, dentre outras ações, de visitas regulares a pessoas privadas de liberdade.
Após cada visita, o MNPCT tem a competência de elaborar um relatório circunstanciado e deve enviá-lo ao CNPCT, à Procuradoria-Geral da República, à administração das unidades visitadas e a outras autoridades competentes. Adicionalmente, o MNPCT possui a atribuição de fazer recomendações a autoridades públicas ou privadas, responsáveis pelas pessoas sob a custódia do Estado.
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