O sumiço de cerca de 20 mil prontuários de atendimentos realizados de 2009 a janeiro de 2024 no Centro de Atenção Psicossocial III (Caps), que funcionava no Bairro Aero Rancho, em Campo Grande, pode mascarar um possível desvio de verba do governo federal, relata o diretor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DenaSUS), Rafael Bruxellas, uma vez que não há comprovação de que os serviços pagos foram efetivamente realizados.
Ontem, o DenaSUS entregou relatório de auditoria realizada em prontuários do Caps III que detectou que 90% dos documentos, que deveriam ficar guardados por até 20 anos, conforme determina a lei, foram descartados.
Ao todo, conforme Bruxellas, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) informou que de 2009 a janeiro de 2024 foram atendidos no local cerca de 23 mil pessoas, porém, quando o DenaSUS solicitou os prontuários desses atendimentos, nem cópias físicas nem cópias digitais foram encontradas.
“O que mostra também não apenas o extravio, mas que não havia um cuidado no processo de armazenamento dos prontuários, como diz a lei que deve ter, para garantir a saúde dos pacientes atendidos no Caps”, declarou o diretor do DenaSUS.
Bruxellas afirmou que, além de ser uma grave perda para o paciente, já que nesses documentos constam as medicações que a pessoa pode ou não consumir, internações e outros históricos pregressos, o sumiço desses documentos pode acarretar situações mais graves, já que a Sesau não tem como comprovar, até agora, que os atendimentos pelos quais recebeu recursos do governo federal foram efetivamente realizados.
“Nós vamos também sentar com a Secretaria Municipal de Saúde, no intuito de pensar um plano de ação, um plano de monitoramento, porque o governo federal tem repassado recursos para o município de Campo Grande, tem repassado recurso para o Caps, que é credenciado, e nós precisamos saber, precisamos garantir que o serviço esteja acontecendo na ponta, nós não temos como garantir que o serviço esteja acontecendo se os dados de produção que estão sendo apresentados pelo Caps a gente não consegue comprovar”, afirmou.
Ainda segundo Bruxellas, o município não soube explicar o motivo de os prontuários não terem sido encontrados, já que, em resposta ao DenaSUS, foi afirmado que houve uma migração de dados para um novo sistema, adquirido por R$ 10 milhões, onde deveriam estar digitalizados esses documentos.
“O sistema apresentava falhas de controle. O Ministério da Saúde já dispõe de um sistema próprio e disponibiliza para a prefeitura. Eles disseram que estão fazendo a migração, mas, de fato, não foram encontrados esses prontuários, não foram apresentados sequer os motivos pelos quais não conseguiram apresentar esses prontuários, o que, para nós, é o mais preocupante”, disse o diretor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS.
O caso, ainda de acordo com Bruxellas, pode resultar no descredenciamento do Caps III do Ministério da Saúde, o que causaria o fim dos repasses para a unidade de saúde mental de Campo Grande.
“Nós encaminhamos o relatório para a área do Ministério da Saúde. Obviamente que, depois da conclusão, há um espaço para que a própria secretaria explique porque ela não identificou esses prontuários e, claro, nosso papel é garantir que o serviço seja prestado, nós não queremos chegar a um ponto de descredenciar o município, porque isso vai prejudicar a população, mas é evidente que, se o município não consegue comprovar a capacidade de realizar os atendimentos, nós talvez não tenhamos outros caminhos”, completou o diretor do DenaSUS.
O documento foi entregue para a delegada Ana Cláudia Medina, do Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (Dracco), que agora investiga o fato, pois somente o descarte dos prontuários já é considerado um crime.
Conforme a delegada, a investigação agora quer entender o motivo do descarte desses documentos e quais outros crimes podem estar relacionados ao fato, como um possível desvio desses recursos.
“O nosso desafio é entender o porquê disso [descarte de prontuários], já que cumprimos medidas cautelares e, de fato, conseguimos encontrar um cenário diferente, inapropriado e irregular. A gente vai verificar se foram desviados [esses recursos], para onde foram e se, de fato, foram. A gente começa com o descarte desses prontuários, mas, conforme vai aprofundando, outros cenários vão aparecendo. Não é o foco principal a questão do recurso, mas acaba sendo algo paralelo”, afirmou Ana Medina, que ainda disse que a mudança de endereço do Caps III, que saiu do Bairro Aero Rancho e agora funciona no Bairro Guanandi, não é desculpa para o descarte do material.
SOS CAIXA PRETA
A investigação começou em outubro de 2024, a partir de denúncia da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio do seu Núcleo de Atenção à Saúde (NAS), de que os prontuários no local estavam sendo descartados.
Em função disso, em abril deste ano, houve a Operação SOS Caixa Preta, quando o Dracco cumpriu mandado de busca e apreensão no Caps III e também em dois endereços de servidoras públicas investigadas, as quais foram afastadas posteriormente.


Motoristas de ônibus trabalharam ontem normalmente, mas a partir de hoje entram em greve por tempo indeterminado na Capital - Foto: Marcelo Victor



