No dia 13 outubro, data em que, por coincidência, celebra-se o Dia Mundial do Escritor, a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL) escolheu dois novos nomes para compor o seu panteão.
A ensaísta Ana Maria Bernardelli ocupará a cadeira de número 27, sucedendo a Lélia Rita de Figueiredo Ribeiro, que faleceu ano passado.
E o artista plástico Humberto Espíndola vai assumir a cadeira 38 no lugar de Wilson Barbosa Martins, que morreu em 2018 e foi colunista, além de um dos fundadores, do Correio do Estado.
Professora de Letras, Ana Maria tem 70 anos, nasceu em São José do Barreiro (SP) e é uma sumidade em literaturas de língua portuguesa e francesa. Antologista de mão cheia, publicou ainda dois volumes com poemas de sua autoria: “Emoções Gota a Gota, Uma Obra Intertextual” (2014) e “Na Trilha das Formigas” (2020).
Nascido em Campo Grande, Humberto Espíndola é formado em Jornalismo e está com 78 anos. Possui uma vasta e reconhecida produção como artista plástico, que o fez representar o Brasil nas bienais de São Paulo (1969 e 1971), Veneza (1972) e em outros eventos internacionais.
Tornou-se o primeiro secretário estadual de Cultura em 1987 e é autor, em colaboração, de catálogos de arte, além de ter publicado, em voo solo, “Pintura e Verso” (2019), com uma centena de poemas e reproduções de suas obras.
Os dois imortais vão tomar posse em breve. Antes disso, a agenda da casa inclui uma solenidade, na próxima quarta-feira (10/11), que irá marcar os 50 anos de fundação da ASL e vai homenagear o Correio do Estado, sala de parto da Academia. Nesta entrevista, conheça um pouco mais da vida e das ideias dos novos acadêmicos."
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Pessoalmente, por que teve o nome escolhido para integrar a ASL?
Ana Maria Bernardelli – acredito que o meu desempenho como professora e organizadora de várias antologias e minha produção poética, de ensaios, principalmente, e de crítica literária foram os índices que levaram à minha escolha.
Além disso, a seriedade quanto ao estudo e à pesquisa, a disposição para o diálogo com os mestres da ASL, a ousadia de uma poética voltada para o existencial, sempre com a presença das experiências do vivido e do cotidiano.
Humberto Espíndola – o nome da família Espíndola colaborou muito na divulgação cultural de MS e também de MT. Meus seis irmãos músicos, dois primos e seis sobrinhos se destacaram na música, contribuindo ao imaginário de nossa terra musical.
Se houvesse uma Academia de Música, certamente alguns dos manos mereceriam estar lá. Poderia ser Sergio, Geraldo, Celito, Tetê, Alzira ou Jerry. Levei minha decisão de concorrer como mais um degrau da trajetória da família.
Vindos do Sul, meu avô foi chacareiro, ninguém conhecia os Espíndola. Acho que a escolha vem de encontro a essa afirmação do nome de artistas desta família.
Muitos atribuem um papel somente simbólico às academias literárias. Qual é, de fato, o papel de uma entidade como a ASL para Mato Grosso do Sul?
Ana Maria – a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras é uma das entidades culturais mais importantes do Estado. Desde sua fundação, em 1971, tem como finalidade a defesa da língua portuguesa e das artes literárias.
Uma de suas significativas realizações é o Suplemento Cultural, assim como o Concurso de Contos Ulisses Serra, a interação da Academia com as escolas, o tradicional chá regado a palestras, todas literárias, e muitas outras atividades. Vê-se, portanto, que longe está de ter um papel simbólico. É a literatura em ação!
Humberto – cada papel tem seu momento histórico e sua localização geográfica. A cultura de uma sociedade é construída em símbolos emblemáticos que, via de regra, buscam uma identidade. Acho que a Academia cumpre esse papel, avalizando os valores literários já consagrados e acenando aos jovens um caminho a ser buscado.
Tanto para quem crê ou mesmo não crê nesses valores, incentivando a literatura por meio de eventos, publicações, notícias, lançamentos de livros ou mesmo críticas construtivas. É responsável por importante parcela do crescimento cultural da nossa terra. É jovem ainda. Constrói o seu elenco de valores.
E, afinal, o que faz um imortal?
Ana Maria – as atividades realizadas pela ASL mostram que a atuação de um imortal não é simbólica. A partir do momento da confirmação de sua escolha, nasce a responsabilidade para com a Academia quanto à participação ativa nos eventos, na produção literária e na preocupação com a língua portuguesa e sua integridade.
Humberto – não morre! Pelo menos é o que encontramos no dicionário [risos]. Também eu quis saber o que significava, para saber o que se fazia. Não sei historiar ainda esse termo bem-humorado, hoje quase cômico, das academias de Letras. Mas uma coisa é certa: a imortalidade é um sonho da humanidade. E a ciência tem planos para chegar lá. Resta ficar vivo para ver.
Para quem escreve, escrever é sempre bom?
Ana Maria – escrever é desnudar-se diante de folhas em branco. É ter a coragem e a ousadia de trabalhar, por meio das palavras, as emoções movidas pelo fluxo da consciência poética. E para fazer isso é preciso ter coração e olhos livres; é preciso amar profundamente o que faz, mesmo que esse momento de produção gere dores e tristezas.
Quem escreve sabe que, mesmo terminado o poema, este caminha levando a outros e a outros. Um eterno contato com os versos, uma roda-gigante de sons, sentidos, emoções e vida!
Humberto – nem sempre conseguimos escrever o que estamos pensando. “Pensar é bem melhor que escrever”, como diz Aline Figueiredo. Mas quando escrevo um poema ou algum texto ou pinto um novo quadro, sempre me motivo. Burilar e aperfeiçoar é sempre muito bom.
Poderia contar uma história marcante envolvendo a experiência da leitura?
Ana Maria – como eu disse, meu pai me incentivava a ler. Houve uma época em que eu me apaixonei por Agatha Christie [1890-1976] e lia seus livros um atrás do outro na companhia de personagens incríveis: Hercules Poirot e Miss Marple.
As tramas engenhosas da autora me deixavam intrigada, pois nunca conseguia desvendá-las, para alegria de meu pai, que, ao contrário, apontava o desfecho com exatidão. Isso se tornou uma agradável brincadeira literária entre nós dois. Eu correndo atrás das tramas christianas, e meu pai com os louros dos acertos. Saudade desse tempo.
Humberto – creio que a mais marcante foi meu encontro com a poesia de Alberto Caeiro, heterônimo de [Fernando] Pessoa (1888-1935). Fiquei tão impactado com seus poemas que decidi parar de escrever. Afinal, Caeiro já tinha escrito tudo que eu ansiava escrever. Foi quando decidi queimar tudo.
O que nós, brasileiros, estamos perdendo por lermos tão pouco?
Ana Maria – a universalização da web e o aumento do acesso a ela têm possibilitado às pessoas ler mais. Porém, essa leitura não é do tipo de leitura literária que se espera. O que se nota é um universo de leitores de livros descartáveis, autoajuda, blogs e redes sociais.
Além disso, a escola brasileira não prioriza a leitura literária. O que nós, brasileiros, estamos perdendo é na qualidade da leitura. Tal comportamento reflete na correta compreensão, expressão e produção de textos coesos, coerentes e inteligentes.
Humberto – sabedoria, cultura, educação, tudo.
Como vê a literatura de MS hoje?
Ana Maria – é interessante observar como o sul-mato-grossense se dedica à poesia. Penso que a amplidão do nosso Estado, sua natureza linda e exuberante, tão ela mesma, desperta nos mais sensíveis a necessidade de extravasar todo esse encanto natural.
No entanto, vejo que as novas gerações já percorrem caminhos diversos, discutindo poeticamente temas como a situação da mulher, preconceitos, racismo.
Percebo que, ao lado da poesia em louvor da terra, há janelas abertas que permitem assistir ao mundo com suas surpresas, sua queda, sua reconstrução: o lado de dentro e o lado de fora de cada poeta em sua singularidade.
Humberto – temos muitos jovens talentos de categoria nacional. Gosto imensamente do trabalho da Moema Vilela, do Marcio Markendorf e do Dante Filho.
Um trio excepcional, de idades diferentes. Na Academia tem muita gente boa, Valmir Batista Correa, Henrique Medeiros, Rubenio Marcelo, para citar alguns. Samuel Medeiros, com o livro “Senhorinha Barbosa Lopes – Uma História da Resistência Feminina na Guerra do Paraguai”, que vai virar um filme produzido, roteirizado e dirigido pelo cineasta Dannon Lacerda, bisneto da personagem central.
Também acompanho e admiro desde os anos 1970 o trabalho da Raquel Naveira, grande poeta, uma forte candidata para a Academia Brasileira de Letras. E Lenilde Ramos, com sua abordagem nova para biografias.
O escritor Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, ganhou o Nobel de Literatura deste ano. A quem concederia a láurea se tivesse de escolher entre os autores locais de MS?
Ana Maria – tarefa difícil essa. Prefiro, se me for permitido, citar alguns dos autores dos quais tenho maior conhecimento da obra: Rubenio Marcelo, Raquel Naveira e Henrique de Medeiros.
Humberto – se ainda estivesse vivo, com certeza, o Nobel seria para Manoel de Barros [1916-2014], inclusive, a Academia de Letras de Mato Grosso cogitou essa ideia, encabeçada pela poeta e escritora Marília Beatriz, na virada do século. Hoje escolheria o explosivo talento de Lenilde Ramos.
O que está lendo e escrevendo no momento?
Ana Maria – estou me deliciando com a sensibilidade de Mia Couto [escritor moçambicano], seu extraordinário trato da alma humana, seu lirismo inconfundível, tudo isso em “Mulheres de Cinza”. Terminei “Crise em Crise – Notas sobre Poesia e Crítica no Brasil Contemporâneo”, de Paulo Franchetti. Sou uma autora tardia.
Aposentei-me recentemente e agora me foi permitido tempo para o trabalho de publicação solo. Tinha publicado até há poucos meses volumes sobre literatura e produção de textos para concursos e vestibulares – o que me ocupava intensamente.
E uma série de ensaios, os quais serão publicados em breve. Também em fase final, “Poemas do Mar”, uma série de poemas voltado à grandiosidade do mar salgado e da própria vida.
Humberto – gosto de ler dois livros simultaneamente. No momento, estou lendo um jovem poeta de Mato Grosso, Caio Augusto Ribeiro, “Manifesto da Manifesta – Mundo-Livro”, e “Contos Estranhos”, de Eduardo Mahon.
Quanto ao que estou escrevendo, concluí por estes dias um texto para o livro “Céu e Inferno em Terras Alagadas”, do fotógrafo José Medeiros, sobre a tragédia da seca e dos incêndios no Pantanal. Fotos dramáticas.
E “Digressões”, que está no prelo, a ser lançado este ano, espero. Quando pinto, entretanto, também escrevo e leio a plasticidade das artes visuais. Acho que, hoje, pintar e escrever me provocam emoções semelhantes.





