Um mestre, um mentor, um pesquisador muito ousado nas suas criações, um olhar atento e crítico, um conselheiro de boa escuta, um fazedor de arte com inspirações que poderiam vir desde o imediato cotidiano até as reflexões contracolonialistas propondo releitura crítica do Brasil Império.
Tudo isso atravessado por uma intensa pesquisa de linguagem, de materiais e de suportes que, assim como a sua presença carismática, contagia de reverência e saudade quem se põe a falar de seu trabalho como artista, professor, curador e gestor cultural ou do convívio como amigo ou familiar.
Carioca do Méier, flamenguista e dono de uma trajetória artística de 46 anos, a contar desde a sua primeira participação em um salão de arte, em 1977, em Petrópólis (RJ), o Salão de Arte Major Julio Koeller, em que conquistou a medalha de bronze, Galvão Pretto partiu há exatos dois anos, em decorrência de um câncer.
Mas, nas palavras da psicóloga Jacy Curado, como se diz de quem deixa um legado e tanto, "a obra do artista nunca morre" e a efeméride serve de ocasião tanto para se lembrar do furacão Galvão quanto para anunciar uma boa nova.
Viúva do artista, com quem viveu em Campo Grande de 1999 até 2023, quando ele faleceu, Jacy é também a curadora do amplo acervo deixado por Galvão Pretto e está programando uma exposição, a ser realizada ainda este ano, que possa apresentar trabalhos consagrados e inéditos, contemplando diferentes momentos da carreira do criador.
Pintando, desenhando, esculpindo ou manipulando materiais recicláveis, sempre escrevendo e ouvindo muita música, Galvão legou uma marca expressiva de múltiplos gestos e preocupações formais.
Seu laboratório inventivo, bebendo desde a fauna e a flora de MS até os registros concretos da escravidão, trouxe um engajamento e uma ilustração que sempre o posicionaram a léguas do óbvio, fazendo de sua atuação, também em sala de aula ou na Fundação Cultural do Estado, onde trabalhou por quase uma década, bem mais que um complemento em sua trajetória.
Essas atividades acabaram, de modo recíproco, servindo de fornalha para a combustão do Galvão artista, formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
NA SALA DE AULA
"O Galvão, além de um mestre na faculdade, foi um mentor mesmo. Ele abraçou aquilo ali [as aulas]. Me levou para fazer um estágio na Fundação de Cultura, na época, de auxiliar no processo [de retomada] do Salão de Arte de Mato Grosso do Sul [que o artista liderou]. Depois fui chamado para participar do Festival do Lixo e Cidadania, lá de Brasília [DF], com uma peça, e aí propus uma parceria para ele, e ele topou na hora. A gente fez várias bolachas feitas com sacos de cimento que retratavam os bichos do Cerrado. Ele era muito generoso nessa questão de passar os conhecimentos, ensinar. Tive a oportunidade de conhecer o ateliê dele, na casa dele, e sempre me recebeu muito bem, tanto eu quanto a minha esposa. Uma pessoa maravilhosa, que foi mostrando alguns caminhos possíveis para se seguir na área de moda, de um modo mais conceitual, a partir das artes. Deixa muita saudade".
(Eduardo Alves, estilista, ex-aluno de Galvão na Uniderp)
EM CAMPO GRANDE
"Falar de Galvão é muito bom. Amigo querido, artista maravilhoso, grande pesquisador e muito ousado nas suas criações. Batalhador pela cultura do nosso estado. Deixou muitos ensinamentos e nos encantava pelo seu conhecimento. Além de muitas lembranças boas, nos deixa um grande legado, que são suas obras. Sou muito grata por ter tido a oportunidade de conviver com ele".
(Lucia Monte Serrat, artista e ex-diretora do Marco)
NO RIO DE JANEIRO
"Minha amizade com o Galvão vem de muito longe e sempre com muito carinho. O Rio de Janeiro dos anos 1990 proporcionava encontros, trocas, amizades e projetos coletivos com muita potência, e foi neste ambiente que nos conhecemos e nos tornamos amigos de família. Ele frequentava a minha casa e eu, a dele. O círculo artístico associado ao Galvão sempre foi muito amplo, ele tinha uma cultura artística vastíssima, e o fato de ter frequentado a Escola de Belas Artes sempre foi um alicerce forte para essa relação. Então, ao se colocar publicamente nos ambientes negros, de ativismo negro, essa sua experiência de circulação e formação fluíam com muita singularidade. Isso sempre me encantou no Galvão e acho que isso nos uniu. Galvão sempre esteve nesse canal de fluidez. Sua arte e as conexões entre arte, política e cena cultural carioca.
Tudo para o Galvão era arte, tudo. Seu olhar estava sempre conectado à criação. Quando observamos as suas instalações, a sua habilidade em pensar o conceito de reciclagem, por exemplo, é um encanto. Os jacarés moldados a partir do uso do papel [reciclado] são um exemplo entre muitos. Seu ateliê aqui no Rio e em Campo Grande são testemunhas de que ele sempre estava buscando um uso conectado com a criação. Isso era encantador.
Eu costumo dizer que ele inspirou o sentido criativo da minha filha, que sempre gostou de desenhar e de brincar com a transformação dos materiais. Olhar para algo qualquer e ver arte, ver transformação e ver que uma outra pessoa pode ser levada a perceber a transformação de algo em arte é algo que me encantava no Galvão. Encantava e continua encantando, porque ele nos deixou, em sua obra, essa provocação. Recentemente, eu e Jacy, estivemos no MoMA [Museu de Arte Moderna de Nova York] e nos deparamos com uma pequena escultura cravejada de materiais diversos e nos arrepiamos. Ela era, no conceito, igual a uma, entre as inúmeras, que estão em sua sala da casa. Então, é mais ou menos isso, nós estávamos ali vendo o Galvão no MoMA. Ele era isso, um anúncio, uma mensagem. Ele foi um artista muito dedicado ao encantamento e à transformação.
Fisicamente, o Galvão me falta por sua reflexão. Reflexão sobre a vida, sobre a política, sobre o racismo, sobre as nossas possibilidades e interdições. Nada escapava ao seu olhar atento e crítico, absolutamente nada. Isso me faz muita falta, mas, por outro lado, como artista, ele não me faz falta, porque eu o vejo em inúmeros presentes que ele me ofertou e, em especial, por ter feito a minha amiga Jacy uma mulher feliz e igualmente criativa, inquieta e crítica. Então, ele ainda está conosco".
(Wania Santanna, historiadora e produtora cultural)
EM CASA E NA VIDA
"O Galvão é um fazedor de arte. Ele fazia arte o tempo inteiro, não era algo que estava fora da vida dele. A arte está no presente, no cotidiano, a todo momento, tanto na pintura, na escultura, no desenho. E também fazia coisas aleatórias. Tem material para várias exposições inéditas, com trabalhos que ele não expôs porque, em muitas das vezes, ele fazia e depois é que pensava em expor. Então, temos algumas exposições inéditas porque não deu tempo ou porque ele não fez as exposições desse material. Sempre realizando o sonho dele, que era estar no ateliê dele, ouvindo a música dele e fazendo arte. Essa é a imagem.
Tranquilo, muito espiritualizado. E, por ser muito espiritualizado, ele tinha uma boa escuta das pessoas. Muita gente ia conversar com ele, pedir conselhos. Era uma característica dele, algo bem bacana. Com o tempo, em Campo Grande, ele foi se modificando, interagindo com a nossa cultura. Todo mundo do Rio fala que o Galvão era a mil por hora e, depois de um tempo, foi ficando bem mais calmo aqui [em Campo Grande], bem mais desacelerado. Acho que isso faz parte do nosso jeito. Uma vez, era uma terça-feira, tipo meia-noite, ele, acostumado a sair na noite do Rio, falou assim: 'O que nós vamos fazer?'. Eu falei: 'Não tem o que fazer à meia-noite em Campo Grande numa terça-feira' [risos]. Esse pique de Rio de Janeiro, depois, com o tempo, foi se modificando e ele foi interagindo mesmo com a nossa cultura mais quieta, mais indígena.
Jazz, música negra americana, reggae, isso tudo. Ele tinha vinil, uns discos antigos, CDs, mas também gravava muita música no pendrive. Fazia uns pendrives com três horas de música, preparava as listas dele bem variadas, com música africana, música brasileira. Era um misto. Ficava ouvindo e trabalhando.
Quero muito fazer essa exposição neste ano. A obra do artista nunca morre. A gente tem que referenciar a memória. E a memória é a partir das exposições, das homenagens. Gostaria muito de fazer essa exposição. O ateliê está todo organizado, fizemos uma manutenção das obras. Mas a gente está tendo alguma dificuldade. Temos poucos locais em Campo Grande que comportariam uma exposição, não são tantos editais. Mas espero fazer uma exposição panorâmica das várias fases. Como eu disse, tem muita coisa inédita. Também fazer uma parte [da mostra] mostrando um making of dos materiais que ele produzia para criar as obras e toda uma trajetória".
(Jacy Curado, psicóloga e ex-esposa)