Na moção de congratulação que recebeu da Câmara Municipal de Campo Grande, em 23 de novembro, a pedagoga Andréia Souza Cássio foi anunciada como a professora que resolveu criar sua própria personagem, a Preta Princesa, e trazer para seus alunos e seguidores um pouco da cultura e do dia a dia da mulher negra.
Especialista em história e em cultura afro-brasileira e em gestão escolar e coordenação pedagógica, Andréia parece não ter tempo a perder.
Agradece a distinção do parlamento municipal, mas aproveita a deixa para continuar cerrando fileiras com os que levantam a bandeira de um país mais colorido e justo do ponto de vista étnico e identitário.
Uma de suas prioridades é criar meios para garantir o cumprimento da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da contribuição africana na formação da sociedade brasileira nas escolas da Capital.
Gratidão e militância
“De fato, isso tudo é necessário para que outras pessoas vejam que há um tratamento diferente sim com pessoas negras."
"O racismo é brutal na nossa sociedade e que, mesmo eu falando e me expressando de forma sutil sobre isso, machuca e deixa marcas para todos”, afirma Andréia.
“O processo de desconstrução é urgente. Fico grata e quero mais reconhecimento para tudo e todos que fazem as diferenças serem vistas e serem trabalhadas por direitos iguais para todos”.
A educadora, de 35 anos, que lançou a Preta Princesa no Centro de Educação Infantil Tia Eva, topou uma brincadeira que este repórter do Correio do Estado propôs: conceder parte da entrevista na pele de sua criação, que veio ao mundo em 2017, depois de ter sentido falta de personagens com a sua tez nas histórias infantis.
Trajando um vestido de formatura que andava esquecido no armário e uma coroa, entrou em sala e deixou a imaginação voar.
Diversidade para aproximar
Hoje são quatro anos de caminhada, com apresentações presenciais, remotas e vídeos que mostram a graciosa personagem em contações de histórias, números musicais e bate-papos.
“Sou alguém que quer um mundo melhor, seguro e menos cruel para todos viverem, um lugar em que eu não tenha medo do meu filho negro ter restrições para andar na rua."
"Uma menina, mulher, mãe, que sonha, ri, chora e é feliz, mas busca direitos iguais sabendo que somos diferentes”, define-se a pedagoga.
“Essa diversidade modifica a gente, mas não separa e nem deveria classificar”, diz Andréia, que se criou “nos ensinamentos umbandistas, ciente de sua ancestralidade”.
Filha de mãe solo, ela prefere direcionar as loas de seu trabalho como educadora e artista para dona Cida, ou simplesmente Mãe Cida, a ialorixá Aparecida da Silva Souza, sua genitora.
“Ela me possibilitou ter essa visão do mundo e me fazer Preta Princesa para contar minhas histórias positivamente, contrariando o olhar eurocentrado”.
Várias personagens
Andréia conta que, na rotina diária, precisa dividir-se entre ser ela mesma, a Preta Princesa, filha, mãe, esposa, professora, amiga e estudante ativista.
“Vamos nos desdobrando em tudo para ter possibilidade de buscar a felicidade nos detalhes”, diz a inquieta educadora, que ainda encontra tempo para atuar como sua própria agente.
Agendando compromissos e prospectando novas oportunidades de a Preta Princesa fazer a criançada sorrir sem deixar de instigar para a reflexão.
Enquanto encara uma nova formação, a Licenciatura em Dança na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Andréia vai agregando o que aprende no curso ao comportamento da princesinha em cena.
Sim, agora a pequena alteza vai dançar cada vez melhor. Sua maior motivação continua sendo a descoberta da ancestralidade.
“Alguns motivos foram se somando: minha avó, minha mãe, meu amor pelas artes, meus sobrinhos, meu esposo, meus filhos e ver o sorriso e o brilho no olhar do outro pelo trabalho que realizo e pela esperança que vai dar certo”, diz a mãe de dois meninos – Davi, de oito anos, e Jorge, de sete –, que vive com eles, o marido, Márcio Benedito, 40 anos, e a enteada Jady, de 17 anos.
Parcerias
“Quero parcerias para estruturar esse projeto e implantar nas escolas, que é onde poderemos alcançar a comunidade em geral, e atingir os diversos públicos na rede social."
"Um lugar para possibilitar valores culturais do povo negro com arte, cultura, dança e livros também me instiga”, convoca a mamãe, também, de mais um cria, não se esqueça, a Preta Princesa. Para conhecer melhor a mãe e a filha, acesse: instagram.com/velazquezandreia.
Entrevista
“A Barbie não me representa”
Preta Princesa, quem é você? O que gosta de fazer? E do que não gosta?
Minha idealizadora, no ano de 2017, me trouxe à vida real, mas eu já morava dentro do coração dela, que só me expôs ao mundo, e fomos juntas brincar nele e trazer alegria para as pessoas. Ela me explicou que encontraríamos nas nossas brincadeiras algumas pessoas adultas que não brincariam conosco por não gostarem da cor da nossa pele. Mas eu disse: ‘E as crianças? Elas são as melhores para nossa brincadeira, vamos brincar com elas e poderemos explicar como nos sentimos com esse pensamento feio de alguns adultos e que muitos deles ensinam para as crianças’. Assim, faremos nossa parte para melhorar as relações nesse mundo real. Não gosto do jeito que as coisas estão caminhando no mundo, faltando respeito entre as pessoas
Quantos anos tem?
35 anos, com alegria e alma de cinco [risos].
Onde nasceu?
Na busca de solucionar uma falta, um acalanto no coração da Andréia. Fisicamente, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, mesmo.
Do que é feita?
De muito amor, sensibilidade e coragem. Costurei isso e me formei.
Onde mora?
No seu imaginário, em uma sociedade buscando curas.
O que você come?
Sentimentos bons, mas morango também vai bem. E o tutu de feijão-preto da vovó Maria Redonda é mágico.
Você pode se molhar?
Sim. Se for chuva, é benção, axé para lavar a alma.
Do que você tem medo?
Que o Thanos [vilão da Marvel inspirado na mitologia] encontre as pedras e reverbere na humanidade. Por hora, busquemos semear amor.
Quem são seus amigos?
Minha mãe, a vida, as vozes que falam na minha cabeça às vezes [risos], o vento que me acaricia quando estou só, o riso solto. Os amigos de sempre na luta do bem, da alegria, do respeito e do amor.
Você conhece a Barbie? Ela é legal?
Não, como eu gostaria! Creio que ela seja legal, sim, pois traz alegria para muitas crianças. Mas não me representa.
O que pensa sobre os humanos?
Há esperança.
Como é ser uma boneca negra em Campo Grande?
Difícil, mas buscamos nosso espaço, não só por ser uma figura que se constrói, mas sim pela desconstrução de imaginário que busco. Os adultos não têm o mesmo olhar das crianças, e é por meio da lei feita por eles que vamos chegar neles mesmos. Para a criança, eu sou eu e pronto. Agora, para o adulto, preciso provar que sou eu. Vamos pautados na Lei 10.639/2003, aí podemos partir disso para comunicarmos a falta de representatividade e tudo que falta nas escolas, nos espaços sociais e políticos. E vamos discutir tudo isso, eu sendo boneca, princesa ou preta, mãe ou cidadã de direitos iguais para todos, independente de rótulos.



As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação


