Em um estado marcado pela vastidão do Pantanal, pela cultura forte do boiadeiro e pela riqueza das raízes indígenas, a arte de Hemerson Silva surge não como um contraponto, mas como uma tradução fiel e visceral dessa identidade. Natural de Campo Grande e radicado em Bonito, Hemerson, de 48 anos, é um daqueles raros casos em que a vida e a obra se entrelaçam de forma tão orgânica que se torna impossível dissociar o artista de sua criação. Funcionário público e guarda municipal, ele dedica seus dias de folga e horas vagas a uma paixão que é, nas suas próprias palavras, “expressão da alma – um gesto que atravessa corpo, memória e ancestralidade”.
Hemerson utiliza a espátula como instrumento para suas artes FOTO: DivulgaçãoAutodidata, Hemerson carrega em suas telas a força de suas origens. “Essas raízes indígenas e africanas estão um pouco nas minhas mãos. É meio natural, é um impulso”, reflete. “É também um gesto de afirmação pela minha raiz, dos meus avós, dos meus pais. Pinto com o corpo que carrega as memórias dos meus ancestrais. O ritmo na pincelada, na espatulada, as cores marcantes... tudo vem de um lugar bem profundo.”
Esse lugar profundo ganha vida por meio de uma técnica singular. Hemerson dialoga com a liberdade do impressionismo, especialmente de Claude Monet, mas criou sua própria linguagem: a espátula como extensão do sentir. Sem usar solventes ou produtos químicos, sua técnica é intencionalmente ecológica, um alinhamento direto com a natureza que reverencia. “Evitar solvente é um gesto coerente com a paisagem que eu defendo”, explica. A tinta, aplicada diretamente do tubo, é empastada e modelada com movimentos firmes e rápidos, criando relevos e texturas que não se contentam em ser vistas, pedem para ser sentidas.
DUPLA JORNADA
Conciliar a arte com a função de guarda municipal é, para muitos, uma contradição. Para Hemerson, é uma fonte inesgotável de inspiração. Ele descreve os dois mundos como aparentemente antagônicos: de um lado, a disciplina hierárquica, a rotina do patrulhamento, a aplicação da lei, do outro lado, a liberdade absoluta de expressão do artista sensível.
“São dois mundos que se chocam”, admite. “Muitas pessoas ficam espantadas... não sei se é um preconceito, de que o artista não pode ser um policial”. No entanto, longe de ser um obstáculo, essa duplicidade foi por ele transformada em combustível criativo. “Durante o meu dia de trabalho, eu observo as pessoas na rua, o movimento das árvores, as luzes, as sombras, as cores que a natureza te proporciona. Vejo as histórias reais, vejo um ipê amarelo, um ipê rosa, e canalizo tudo isso para a minha arte. Transformo tudo em textura por meio das espátulas”.
A diferença crucial, ele pontua, está no eixo disciplina-liberdade. Enquanto uma profissão exige rigor, a outra oferece um campo aberto para sonhar. “Ambas cuidam da minha vida de um jeito diferente. Eu consigo extrair do guarda municipal e transformar isso em arte”.
TÉCNICA
O termo “Espátula-Memória”, que batiza seu estilo, não poderia ser mais adequado. A textura em suas telas não é um mero efeito estético; é narrativa. “Ela surge com o acúmulo de camadas que eu vou aplicando, trabalhando luzes e sombras, profundidade”, detalha o artista. “Trabalho com o corpo, com a mente, movimentos rápidos e firmes. A espátula me permite esculpir na tinta”.
Os temas que escolhe esculpir são fragmentos do Mato Grosso do Sul que habitam seu ser. São cenas que carrega desde a infância: “As boiadas cruzando as estradas, os boiadeiros, as grandes comitivas... o pescador no entardecer, a árvore em flor”.
Suas telas são povoadas por retratos de povos originários, lavradores, ipês em flor e as paisagens úmidas e ensolaradas de Bonito. “Tudo isso me emociona e pede para ser lembrado, eternizado. São símbolos de resistência e de beleza cotidiana do nosso pantanal, que passa por tempos de queimadas, por tempos de cheias. Preciso retratar isso para que fique como uma memória para a geração futura”.
ALÉM DAS FRONTEIRAS
O que começou como uma distração, uma curiosidade há mais de uma década, hoje transcende as fronteiras do município e do Estado. Hemerson já expôs suas obras no Teatro Rubens Gil de Camillo, em Campo Grande, e em feiras culturais, mas sua presença é marcante em Bonito, onde suas obras habitam restaurantes, pousadas e hotéis, integrando-se à paisagem cultural da cidade.
O mais significativo, porém, é que suas telas iniciaram uma diáspora inversa: da terra pantaneira para coleções particulares ao redor do mundo. Ele conta duas histórias com orgulho visceral. A primeira é de um turista holandês que, emocionado ao ver a pintura de um indígena em uma cachaçaria local, rastreou o artista, comprou a tela e ainda levou consigo um tucano. “Ele mandou a foto agradecido pela sensação de ter uma obra feita em Bonito retratando a terra”, lembra Hemerson.
A segunda história envolve um casal em uma feira em Campo Grande. Eles compraram uma tela de um cavalo e um ipê amarelo para enviar à filha, que mora no Texas. “Ela adora cavalo e eles queriam uma obra para retratar o nosso estado, para ter outra dimensão da nossa cultura”, relata. Para o artista, saber que sua arte viaja é “muito satisfatório. Levar nossa cultura tão longe por meio das minhas espátulas, das minhas tintas e das cores vibrantes... é saber que temos a oportunidade de expressar nossa arte e eternizar as cenas.”
VALORIZAÇÃO
Apesar do reconhecimento internacional, Hemerson tem plena consciência de que integra um exército de artistas que ainda “vivem na invisibilidade” em Mato Grosso do Sul. “Nós ainda precisamos caminhar muito em reconhecimento, em investimento, em visibilidade. O apoio à arte é bem restrito e a gente sente isso na pele”.
Sua missão, portanto, vai além do pessoal. É uma missão cultural. “Com a minha arte, eu quero ajudar o nosso estado, ajudar a minha terra a ser conhecida por aqueles que não conhecem ainda. Para que o nosso estado seja reconhecido, para que os artistas sejam reconhecidos, para que aqueles que ainda são invisíveis possam ter visibilidade”.
O que ele espera, no fim das contas, é que suas telas operem um milagre sensorial. Que as pessoas possam sentir, por meio das camadas grossas de tinta e das cores vibrantes, “o silêncio do rio correndo, o calor do sol na pele ardente”. Que sua arte seja um portal para que todos, sul-mato-grossenses ou não, possam reconhecer a pluralidade de um povo mestiço – branco, negro, indígena – e a herança viva que floresce, resiliente e bela, no coração do Brasil, moldada pela espátula-memória de Hemerson Silva.

Neli Marlene Monteiro Tomari e Yosichico Tomari, que hoje comemoram bodas de ouro, 50 anos de casamento - Foto: Arquivo Pessoal
Donata Meirelles - Foto: Marcos Samerson


