Para quem curte o cinema brasileiro de pegada mais autoral, a nova mostra promovida pelo curso de Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), “Cinema Novo e Marginal”, é como se fosse uma micareta, que tem início hoje e segue até 30 de novembro.
A festança começa com “Sem Essa, Aranha” (1970), terceiro longa de Rogério Sganzerla (1946-2004), a ser debatido após a projeção, programada para as 17h30min, no Auditório Marçal de Souza (campus da UFMS).
E terá ainda outros 15 títulos, todos, assim como o filme de Sganzerla, com um papel de destaque no contexto do que se convencionou chamar de cinema de invenção, dada a possibilidade que abre de se pensar o cinema e a arte fora do lugar-comum.
Dos temas aos personagens, vale mais o modo como cada realizador efetiva – na câmera e na tela – suas tramas, seus panfletos e seus delírios do que propriamente a história contada.
Ainda que – e, por paradoxo, muitas vezes por isso mesmo – as obras em cartaz caminhem rente à pulsação de um período de intensa agitação na sociedade brasileira, desde o governo JK (1956-1961) à abertura política que se estende aos anos 1980, passando principalmente pelo recrudescimento institucional da ditadura iniciada em 1964.
À caça às bruxas, o cinema respondeu com militância, desbunde e forte engajamento de linguagem, que proporcionaram uma reinvenção vista e aplaudida em ecrãs mundo afora no mesmo momento em que, por exemplo, a nouvelle vague (França), o free cinema (Inglaterra) e o underground (EUA) também oxigenavam a cinematografia de seus países e além.
Especialista no assunto, com pós-doutorado no Brasil e nos EUA, o professor Julio Bezerra é o responsável pela curadoria da mostra, que recebeu o nome dos dois movimentos que mais renovaram a paisagem do cinema brasileiro, o cinema novo e o cinema marginal. Confira trechos da entrevista com o curador. Todas as sessões são gratuitas.
Qual a proposta da mostra?
Na verdade, trata-se do cineclube do curso de Audiovisual. É um projeto de extensão criado em 2019, quando o curso foi criado e eu vim parar aqui. Sou do Rio de Janeiro, e parte importante da minha formação cinéfila se deu em variados cineclubes cariocas.
Logo no primeiro semestre, pareceu-me evidente a necessidade de criação de um cineclube como uma forma de ampliar o horizonte cinematográfico dos nossos alunos, que, em geral, chegam na UFMS tendo como referência primeira o cinema hollywoodiano e as séries dos streamings.
A cada semestre, temos um recorte diferente. Eu apresento algumas opções aos alunos e eles é que batem o martelo – já tivemos Cinema e Juventude, Comédias, Melodrama, Hong Kong, Nova Hollywood e Diretoras Mulheres.
Eu monto então uma lista de filmes, introduzo cada um deles antes das respectivas sessões e, finda a exibição, debatemos. Estamos neste momento tentando viabilizar novos braços para o cineclube, como a criação de um podcast e de uma seção no site do curso para abrigar críticas dos filmes programados.
Quais critérios nortearam a escolha dos filmes?
Os critérios são variados. Em primeiro lugar, não há como negar que as escolhas são atravessadas pelo meu gosto pessoal. Em segundo, tento não repetir filmes que já são exibidos e discutidos em sala de aula.
Em terceiro, me preocupo sempre com questões de representatividade (filmes dirigidos por negros, mulheres e obras nacionais) e diversidade de propostas estético-temáticas.
Em quarto, porém não menos importante, tento sempre levar em conta o gosto geral dos alunos.
A ideia do cineclube é alimentar, promover e intensificar o gosto pelo cinema.
Portanto, exibir filmes que, em minha opinião, os alunos vão gostar é algo da maior importância. Sempre seleciono um ou outro filme mais arriscado, mas procuro equilibrar essa intenção com aquilo que imagino que eles vão gostar mais.
Há trabalhos que foram realizados há 40, 50, 60 anos ou até mais que isso. Por que é relevante retomar esse conjunto de filmes na atualidade? Tanto para a formação dos alunos quanto para o público em geral…
Estamos falando de duas das mais importantes décadas da história do cinema como um todo, quando a sétima arte recupera um ímpeto mais experimental, inédito desde o fim das vanguardas.
A nouvelle vague francesa explode na virada para os anos 1960 e contamina o mundo inteiro, marcando, como costumamos dizer, o nascimento do cinema moderno.
Combinando propostas estéticas inovadoras e um desejo de falar “o” brasileiro, o cinema nacional, seja em sua faceta cinema novo, seja no que concerne ao cinema marginal, ocupou um lugar de destaque nesta onda transnacional.
E estes filmes, sobretudo os primeiros do cinema novo, ao contrário do que muitos podem imaginar, foram sucesso de público e estavam absolutamente afinados com o momento histórico brasileiro, marcado inicialmente por um otimismo que viria a ser logo duramente interrompido pelo golpe civil-militar.
É da maior importância, portanto, que nossos alunos em particular e o público mais geral da Capital tenham contato com essas obras, cada vez mais distantes no tempo e muito pouco visíveis nos streamings da vida.
Acredito que, para muita gente, o cinema novo brasileiro é um fato cultural restrito aos anos 1960. No entanto, está na mostra “Eles Não Usam Black-Tie”, que já é de 1981, e “O Poeta do Castelo”, de 1959, além de trabalhos dos anos 1970. Poderia comentar essa flutuação cronológica e o lugar-comum relacionado à década de 1960?
Essa é uma pergunta fundamental, ela abarca uma série variada de questões. É, sem dúvida nenhuma, importante. Sublinha que o cinema novo não começa nem termina nos anos 1960.
O cinema novo é, antes de mais nada, uma visão de mundo e um projeto de cinema. Essa visão e esse projeto vão sendo gestados ao longo dos anos 1950. Os próprios cinemanovistas vão eleger exemplos anteriores a serem seguidos, sendo Humberto Mauro o nome mais famoso entre eles.
A primeira geração do cinema novo vai sofrer o baque do golpe. Ela será também vítima da precariedade que define o nosso cinema.
Contudo, seus integrantes continuaram filmando ao longo dos anos 1970 e 1980, fazendo filmes que, embora ainda tivessem aquela visão e aquele projeto no retrovisor, podiam se revelar bem diferentes daqueles que os tornaram famosos na década anterior.
Basta pensar nos filmes que Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e Walter Lima Jr. realizaram neste período.
O cinema novo é hoje incontornável. Ele enseja compromissos com o mundo, o Brasil e o cinema pelos quais cineastas posteriores não conseguem passar imunes.
Um outro aspecto da mostra, até certo ponto menos comum, embora não seja algo inédito, é propor cinema novo e cinema marginal “juntos”.
Os dois movimentos permaneceram por muito tempo quase que em lados opostos do “ringue” do cinema de autor. Poderia comentar tal opção?
Esse foi um pedido dos próprios alunos e alunas do curso.
E, confesso, gostei bastante de colocá-los lado a lado. A própria disputa entre esses “movimentos” me parece interessante de ser discutida com os alunos e alunas, embora seja igualmente importante sublinhar suas diferenças.
Gostaria que, se possível, comentasse “Sem Essa, Aranha”, que abre a mostra e talvez marque uma inflexão na carreira de Sganzerla. E também o pacote de curtas da última sessão.
“Sem Essa, Aranha” é um dos três filmes dirigidos por Rogério Sganzerla na Belair, produtora carioca fundada pelo diretor em associação com Júlio Bressane. A Belair teve vida curta, mas foi aos poucos ganhando uma aura quase mitológica. Os filmes eram ágeis, baratos, colaborativos e exalavam por todos os planos uma contagiante liberdade de criação.
“Sem Essa, Aranha” não tinha roteiro e, em todas as suas etapas, foi marcado por um processo aberto ao improviso. O filme conta a história de Aranha, uma espécie de gangster, “o último capitalista do Brasil”. Interpretado por Jorge Loredo, o personagem se destrói aos poucos, em uma reflexão sobre o País daquele momento e o próprio papel do cinema.
É um filme em crise, violento, fragmentado, pontuado por berros, as mais variadas referências e longos planos-sequência.
Ao contrário dos sucessos anteriores de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) e “A Mulher de Todos” (1969) [os dois primeiros longas de Sganzerla], “Sem Essa, Aranha” é retido pela censura e não obtém o selo de qualidade emitido pelo Instituto Nacional de Cinema (INC), o que inviabiliza seu lançamento comercial.
Com a sessão de curtas, a ideia é apontar outros caminhos não percorridos pelos longas programados.
Um desses caminhos é o do documentário, um gênero absolutamente importante para o cinema novo e aqui representado pelos curtas de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade.
Helena Solberg, uma das poucas diretoras associadas ao cinema novo, e o hoje um tanto esquecido Aloysio Raulino também estão devidamente perfilados.
“Manhã Cinzenta” foi um dos primeiros filmes proibidos pela ditadura militar. Grande ator e cineasta, Zózimo Bulbul é um dos nomes mais importantes para se pensar o cinema negro no Brasil.
Carlos Reichenbach faz uma espécie de ponte entre o marginal e a produção da boca do lixo em São Paulo. E o curta de temática homossexual de Djalma Limongi Batista nos convida a imaginar caminhos que aquele cinema poderia ter percorrido.




