São palavras de Raquel Naveira na apresentação de sua obra “Fiandeira”: “Sou uma fiandeira,/Vivo à beira De tudo aquilo que é frágil,/Que parece fiapo /Ou que está por um fio”.
Com essa autodenominação, Raquel Naveira junta-se à longa lista de fiandeiras da literatura universal e, da mesma forma que elas, invoca a figura singular das Deusas Tecelãs que fiam e entrelaçam não só a vida humana, mas também o destino do mundo, pois a poeta sul-mato-grossense sabe-se mulher habilidosa em seu ofício ao fiar, tecer e construir o universo que a rodeia. Sabe que aquilo que é frágil se torna pertinaz; aquilo que está por um fio se torna forte e vigoroso em suas mãos poéticas.
As Moiras, as Parcas, as Nornas, as Weird Sisters, as Valquírias, Penépole, todas são fiandeiras, consideradas arquétipos na literatura, representando simbolismos recorrentes em diferentes obras de diferentes culturas.
As fiandeiras desempenharam um papel crucial na história ao produzir trilhas essenciais para a vida cotidiana e ao transmitir conhecimentos tradicionais de geração em geração. Além disso, sua presença na literatura contribuiu para a construção de significados culturais associados a essa atividade artesanal, enriquecendo o imaginário coletivo ao longo dos tempos.
Ao ler “Fiandeira”, o conjunto dos textos me pareceu uma colcha a ser desvendada quanto à mágica dos bordados tecidos. Cada um dos arabescos poéticos tinha infinitos traçados de infinitas linhas de infinitas cores a mostrar – caminhos de uma realidade física e longos trajetos calçados de sonhos e do fantasioso da autora.
Imbuída pelo fascínio de suas antecessoras, Raquel Naveira teceu o seu mundo dual – realidade e suprarrealidade, onde fia as emoções, as imagens, os sentimentos compartilhados, as ausências... tudo em inquestionáveis aspectos atemporais e universais.
Embora “Fiandeira” date de 1992, e os tempos modernos sejam outros, Raquel Naveira, fiandeira que é, cria um microcosmo em que as ideias, deliciosamente, se tornam atuais, vivas, pois a autora, com o manejo simbólico, controla o destino de seus personagens a partir do conhecimento do tempo tal as antigas fiandeiras.
Graças à arte da autora, seus poemas e textos em prosa ficam-nos na memória, em um vai e vem constante, seja pelo caráter religioso, existencial, mitológico, de admiração pela terra natal, seus habitantes comuns e/ou personalidades.
“Fiandeira” é uma obra de formação, pois Naveira, com sabedoria e significativa dose enigmática, próprias das singulares tecelãs, traz indubitável aprendizado intelectual e emocional ao leitor, ora apresentando orientações, ora reflexões aos perenes mistérios da vida. Por um lado, simboliza a laboriosidade e a importância do trabalho, no caso, o labor com as palavras; por outro lado, configura-se uma evocação do senso de mistério e magia.
“Fiandeira” é leitura de muitas vezes... É leitura de deleite... É leitura que resiste ao tempo... e quanto mais o tempo passa, mais ela cresce e se agiganta.
Uma obra rica pela presença do trabalho semântico. A autora afirma seu fascínio pelos sinônimos, antônimos, polissemia, pelas figuras de linguagem e pela inserção de vários autores, teóricos e poetas que com ela comungam a devoção à poesia. Quanto a isso, Raquel Naveira se põe de mãos dadas com Adélia Prado e Edgar Allan Poe ao discutirem sobre a presença da tristeza no “tecer” de um poema: a poesia tem a capacidade de encontrar beleza nas emoções mais sombrias; pode ser vista como uma faceta complexa e significativa da experiência humana, e a poesia pode ressaltar essa beleza inerente mesmo nas circunstâncias mais difíceis.
É importante ressaltar que a criação poética não se limita apenas à tristeza. Poetas podem encontrar inspiração em uma variedade de emoções, experiências e temas, e a poesia pode ser um meio de explorar a gama completa da experiência humana, incluindo alegria, amor, esperança e muito mais.
Cada emoção traz sua própria riqueza e profundidade para a poesia, permitindo que os poetas expressem a complexidade da vida em suas palavras. O que Raquel Naveira faz com sutil engenhosidade em “Casa da Tristeza”:
“Moro na casa da tristeza
E da porta estreita
Vejo nascerem flores de
melancolia.
Moro na casa da tristeza
Onde é sempre outono
E o vento varre velhas ruínas...”.
Como acontece com todos os arquétipos, diferentes autores e culturas podem interpretá-los de maneiras únicas e adicioná-los a suas histórias para transmitir uma variedade de significados e mensagens. O arquétipo da fiandeira continua sendo um tema relevante na literatura moderna, já que suas características atemporais ressoam com os leitores ao longo do tempo.
Raquel Naveira é enfática ao dizer, finalizando sua obra: “Escrever poesias nos dias de hoje pode ser considerada uma tarefa solitária, inútil e insana. Mas garanto-lhes, cheguei ao auge da loucura: vivo de poesia, pela poesia e para a poesia”.
Ela se questiona sobre os motivos que a levaram a escrever, e desse questionamento surge o poema:
“Sou uma fiandeira
Tecendo noite e dia
Uma estreita de pensamentos.
Sou uma fiandeira
Aranha tirando de dentro
A liga que emaranha.
Sou uma fiandeira
Amarrando com as mãos
firmes
Os laços do meu destino...”.
“Sou uma fiandeira” explora o processo de reflexão, criação e crença da autora, utilizando a metáfora da fiandeira e da tecelagem para transmitir a complexidade da vida humana e o ato constante de moldar os pensamentos, as emoções e os destinos – uma resoluta resposta ao questionamento inicial (continua na página B4).
*Da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.




