"Fazer esse trabalho foi extremamente prazeroso porque eu já era fã do Raul Seixas e tive a oportunidade de me aprofundar ainda mais na vida e na obra dele".
Lívia Gaudencio está festejando seus 15 anos de carreira como roteirista de forma muito especial! A artista é a única mulher na equipe que assina o roteiro da série “Raul Seixas: Eu sou”, no Globoplay.
Mineira, Lívia ainda tem no currículo o trabalho de no roteiro do filme “Maria do caritó”, estrelado por Lilia Cabral, a criação e o roteiro da webserie “Steam Girls”, sobre meninas na ciência, e o curta “Lembranças de Barcelona” sobre feminicídio.
Dona e diretora da Gautu Filmes, focada na produção de projetos autorais para o mercado audiovisual, ela pretende lançar este ano o curta “Onde está você agora?”, sobre uma mulher que lida com a perda gestacional e, ao mesmo tempo, precisa cuidar da mãe com Alzheimer. Além de protagonizar a produção (que tem uma equipe majoritariamente composta por mulheres), ela ainda é a roteirista e faz codireção.
Lívia também é atriz há 25 anos, e passou por escolas renomadas como a New York University e a Escuela Internacional de Cine y TV, de Cuba. A artista atuou no elogiado filme “Batismo de sangue” e na série “A cura”, da Globo. Nos próximos meses, vai rodar o país apresentando espetáculos da premiada Companhia O Trem, da qual é diretora artística.
Lívia Gaudencio é a Capa exclusiva do Correio B+ desta semana, e entrevista ao Caderno ela fala da celebração especial que está vivêndo, trabalhos, carreira e estreias.
A roteirista Lívia Gaudencio é Cap exclusiva do Correio B+ desta semana - Fotos: Matheus Soriedem - Diagramação: Denis Felipe - Por: Flávia VianaCE - Lívia, você integra a equipe de roteiristas da série “Raul Seixas: eu sou”, que chegou em junho no catálogo do Globoplay. Como surgiu a oportunidade de fazer parte desse projeto? Como foi a busca de histórias a serem incluídas na produção?
LG - Eu estava trabalhando em outros projetos com o Paulo Morelli, sócio da O2 Filmes, quando deram início ao desenvolvimento da série "Raul Seixas, Eu Sou".
Na época eu estava também fazendo mestrado em Estudos Sobre as Mulheres, em Portugal, e eles buscavam um olhar feminino para a narrativa. O convite de integrar a equipe surgiu e eu fiquei encarregada de desenvolver o Episódio 3, porque é quando vemos o primeiro divórcio do Raul, um momento muito traumático e delicado para ele e a ex-esposa, Edith.
A pesquisa para a série partiu de biografias, entrevistas com amigos e familiares e do vasto material disponível na mídia. A partir daí, fomos colocando a nossa digital através das criações ficcionais, principalmente no que diz respeito às cenas de realismo fantástico onde pudemos dar vida às loucuras e criações geniais da mente do Raul.
CE - No processo de criação, o que mais te chamou a atenção sobre a vida de Raul Seixas? Descobriu algo que desconhecia ou que tinha informação errada?
LG - O que mais me chamou a atenção foram as fragilidades do Raul. Todo gênio é incompreendido em sua tentativa de compreender o mundo. Raul sofreu muito por não se encaixar em dogmas culturais e regras sociais e isto o adoeceu. Acredito que a autodestruição dele vem desta dificuldade do não pertencimento.
Eu desconhecia a faceta familiar do Raul e gostei muito de desenvolver as cenas de intimidade dele com suas esposas e filhas. O que sempre chegou para o público foi a persona artística de maluco beleza que ele criou, mas o Raul tinha uma psique complexa e cheia de contradições como todo ser humano e que pudemos retratar na série.
CE - Com tanto conhecimento agora sobre a vida de um dos maiores cantores do Brasil, consegue descrever melhor a razão pela qual ele segue sendo cultuado até hoje?
LG - O Raul era visionário nos sincretismos que fazia. Seja musical, político ou espiritual, tudo era inovador nas misturas que ele fazia. As pessoas que apresentam o novo acabam sendo colocadas neste lugar de líderes. E este foi um grande dilema para o Raul, que ficava dividido entre gostar de ser cultuado ao mesmo tempo em que queria libertar as pessoas das idolatrias e ideologias cegas.
CE - O que é mais difícil na hora de se roteirizar um projeto sobre a vida de uma personalidade relevante?
LG - Honrar a memória de uma personalidade tão gigante é uma baita responsabilidade, principalmente porque a pessoa não está mais aqui para falar por si e a obra pode ter um efeito de selar uma meia verdade como verdade inteira.
Além disso, eu acho muito delicado retratar a vida de pessoas reais, porque o que pra nós é entretenimento, para elas pode significar traumas e memórias familiares muito sensíveis. Eu sempre fazia o exercício de me colocar no lugar das esposas e das filhas, ou até mesmo dos parceiros profissionais, como o Paulo Coelho. Imaginar estas pessoas se vendo na série era uma forma de não ser maniqueísta na construção das cenas e de respeitar a história daquelas pessoas também.
CE - “Raul Seixas: eu sou”, aliás, marca seus 15 anos como roteirista. Acredita que esse projeto é um divisor de águas da sua carreira, mesmo já tendo feito trabalhos como o roteiro do filme “Maria do Caritó”, baseado na peça homônima com Lilia Cabral?
LG - Acredito ser um divisor de águas na minha carreira pela visibilidade que, obviamente, a obra tem, mas principalmente porque o processo de criação da série me trouxe a certeza de estar no lugar certo fazendo a coisa certa. O convite para escrever a série aconteceu em um momento em que eu pensava em desistir de trabalhar como roteirista.
Eu estava fazendo mestrado em sociologia, em uma tentativa de mudar de carreira, pensando em talvez seguir na academia. Mas conciliar a escrita acadêmica com a escrita de uma série de tv me deu a perspectiva de que, apesar de adorar a pesquisa científica, minha base é o teatro e a arte é onde me sinto em casa. Foi a partir deste reconhecimento de onde mora minha pulsão de vida que decidi voltar para o Brasil e abrir minha produtora de cinema.
CE - Nesses anos como roteirista, você fez vários projetos com foco em pautas relevantes para mulheres, como feminicídio e perda gestacional. Como analisa o interesse atual do mercado e do público em ver nas telas assuntos urgentes como esses?
LG - Acho que sempre houve o interesse do público em temas que dialogam com as fragilidades humanas. Em termos mercadológicos, o que eu acredito que tem mudado é a expansão das janelas de exibição - através da internet, por exemplo - o que traz mais oferta de obras e temas que atendem a grupos de interesses muito específicos. Acredito que os temas femininos têm ganhado mais espaço no audiovisual na medida em que também têm sido mais discutidos fora das telas.
A roteirista Lívia Gaudencio é Cap exclusiva do Correio B+ desta semana - Fotos: Matheus Soriedem - Diagramação: Denis Felipe - Por: Flávia VianaCE - Inclusive, você tem uma produtora: a Gautu. Como é ser uma mulher dona de uma empresa que gera conteúdo para o audiovisual? E como enxerga esse crescente número de mulheres atrás das câmeras?
LG - Eu abri a Gautu Filmes este ano, então ainda sou bastante iniciante como produtora audiovisual. Ser uma mulher em papel de liderança tem seus desafios porque o acesso a este lugar é historicamente muito recente para as mulheres, mas acredito muito no potencial de transformação das relações de trabalho que vem da visão feminina no mundo empresarial.
Este ano foi produzido o primeiro curta-metragem pela Gautu Filmes e, propositalmente, priorizei contratar mulheres nas funções principais. Além de fortalecer a presença de mulheres no mercado audiovisual (que ainda é sub-representada e sub-remunerada), eu queria uma atmosfera mais feminina porque a história do curta pedia isso. Acredito que deu muito certo, pois tivemos um ambiente colaborativo e mais horizontal na tomada de decisões e isso possibilitou, inclusive, otimizar o orçamento através de parcerias firmadas através destas mulheres.
CE - Além de escrever, você também atua e já fez trabalhos na TV e no cinema. Pensa em fazer novelas? Acredita que estar no elenco de uma produção da TV aberta ainda é fundamental para uma carreira de sucesso?
LG - Eu quero muito voltar a atuar com mais frequência. Eu andei afastada dos palcos e das telas porque estava dedicada à maternidade, então a escrita era algo mais possível de conciliar com o tipo de maternidade que eu escolhi para minha relação com meus filhos, até este momento. Eu nunca atuei em novelas então eu gostaria sim de viver esta experiência.
Reconheço que o alcance que a novela tem, amplia as possibilidades de atuação dos artistas, mas o mais gratificante pra mim é poder interpretar personagens que eu me conecte de alguma maneira, que eu enxergue algum sentido em viver aquela história na pele. Não importa se eles vêm através das narrativas de novelas, cinema ou teatro.
CE - Com 15 anos como roteirista e 25 como atriz, quais seus sonhos profissionais?
LG - Tenho muitos sonhos comuns à profissão. Acredito que todo ator e atriz já se imaginou ganhando um Oscar, por exemplo (risos). Mas prefiro ir desenhando meus caminhos à medida que as possibilidades se apresentam. Realizar meu primeiro projeto de longa ou série autoral seria uma grande realização profissional e, agora, com a Gautu Filmes, é algo possível de acontecer. Depois desta realização, já posso seguir para um sonho maior.
CE - Lívia, quais seus próximos projetos a caminho?
LG - Tenho vários projetos em andamento. Vou dando mais atenção a um, ou a outro, à medida em que vão avançando. Alguns projetos não podemos mencionar por causa de contratos. Mas posso dizer que, no momento, estou focada na finalização do curta-metragem "Onde está Você agora?", que escrevi, co-dirigi e protagonizei. A ideia, a princípio, é circular por festivais e buscar novas colaborações através da Gautu Filmes.