Victor Macaulin não anda nada satisfeito com as políticas públicas para a área cultural em Campo Grande. Mas o artista visual não gosta de reclamar, prefere colocar a mão na massa e fazer acontecer em projetos de interação coletiva entre os criadores e de acesso gratuito para o público.
Assim nasceu, por exemplo, o Arte Para Quem?, que movimentou o centro da cidade nos últimos dias.
Quem visitou a iniciativa se deparou com exposições de pinturas, desenhos e esculturas, espetáculos teatrais, shows musicais, coreografias de dança, performances de pirofagia (malabarismo com fogo) e diversas outras expressões, tudo de graça.
Isso mesmo. Inspirado no centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o Arte Para Quem? acabou se tornando um golaço para marcar a importante efeméride na Capital Morena.
Se a Semana de 22 virou de ponta-cabeça os conceitos e a prática artística do Brasil dos anos 1920, então ainda dominado pela pintura de gabinete, pela literatura parnasiana e pela música engomada na tradição europeia, o APQ?
Representa um eco interessante, consistente e necessário para fazer valer os pressupostos modernistas de Oswald e Mário de Andrade, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Villa-Lobos e outros expoentes que desejaram, por meio da arte, mostrar o Brasil ao Brasil.
ENGAJAMENTO
E não falta engajamento no projeto pilotado por Macaulin, que traz na veia a militância de forma e de conteúdo. Desde o dia 13, exatamente quando a Semana de 22 teve início, há 100 anos, no Teatro Municipal de São Paulo, o artista coordenou as apresentações na entrada de espaços culturais ou, de fato, no meio da rua.
Com a intervenção de ontem, o projeto se encerrou, somando 10 matinês de arte engajada e multilinguagem.
É como se os versos de Zé Kéti (1921-1999) e Hortêncio Rocha, na canção “Diz Que Fui Por Aí”, ganhassem uma materialidade inusitada às vésperas de um Carnaval que promete mais sofá que avenida. “Se alguém perguntar por mim/Diz que Fui por Aí/Levando um violão debaixo do braço/Em qualquer esquina, eu paro/Em qualquer botequim, eu entro/E se houver motivo, é mais um samba que eu faço”, diz a letra de 1964.
“Não poderíamos deixar de fazer algo em Campo Grande para nos posicionar como artistas e classe cultural. Faz 100 anos da Semana de Arte Moderna”, explica Macaulin. “A ideia foi uma ação de ocupação de espaços sem o apoio dos órgãos públicos. É importante, sim, pois precisamos ocupar mais esses espaços, que são nossos por direito. Infelizmente, por haver pouco incentivo cultural por parte do governo, as pessoas pouco se conectam com as diversas expressões artísticas”, completa.
SEM CACHÊ
Com a participação de dezenas de artistas, todos apenas por amor à causa, sem o recebimento de cachê ou bancando a própria infraestrutura, o APQ? marcou presença nos seguintes locais: Teatro do Paço Municipal;
Morada dos Baís; Sarau de Segunda, na Praça Cuiabá/Cabeça de Boi; esquina da Rua 14 de Julho com a Barão do Rio Branco; Praça dos Imigrantes, em frente ao Jurema Bar; Larica’s Cultural (Rua Antônio Maria Coelho, nº 1.663); Marco – Museu de Arte Contemporânea (Parque das Nações Indígenas); Cultura Di Buteco (Rua Aporé, nº 97); Centro de Belas Artes (Av. Ernesto Geisel, nº 407); e Centro Cultural José Octávio Guizzo (Rua 26 de Agosto, nº 453).
Nilce Maciel (pirofagia), Erika Pedraza (pintura ao vivo), Marcia Albuquerque (arteterapia), Marina Cozta (fotografia), Sara (street art), Lina da Anunciação (ilustração e pintura), Loren Artesão (artesanato e body art), Léo Bueno (arte ambiental) e Felipe Lourenço (música e teatro), além do próprio Victor Macaulin, estão entre os artistas que inflamaram as ruas de Campo Grande com sua expressão desde a semana passada.
ARTE E VÍCIO
“A reação do público é muito importante nesse processo. Alguns interagem, elogiam, tiram fotos ou fazem filmagens”, diz Macaulin, que se emociona ao lembrar de um episódio ocorrido na quarta-feira (16/02).
“Um homem se interessou por algumas obras em papel e perguntou o valor da que ele gostou. Eu disse que era R$ 20 e ele tirou várias notas de R$ 2, pediu para eu contar e tirar os R$ 20 que ele ia levar a obra. Falou que admira muito desenhos que possuem olhar”, conta o idealizador do Arte Para Quem?.
Detalhe: “Ele falou que era usuário de pasta-base [entorpecente derivado da cocaína], mas que isso não o impedia de comprar uma obra de arte”.
Macaulin costuma trabalhar com materiais recicláveis e atualmente desenvolve uma pesquisa a partir de tintas com pigmentos minerais e vegetais.
“Estou expondo trabalhos que foram feitos com tintas produzidas com as cinzas dos incêndios ocorridos em quatro biomas [Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Pantanal], recolhidas pelo ‘artivista’ Mundano [de São Paulo]”, conta o artista visual.
FURAR A BOLHA
Felipe Lourenço diz que a sensação de se apresentar de graça em praça pública é indescritível. O ator e músico bateu ponto na esquina da 14 com a Barão.
“Foi sempre chocante, desde o pedestre que estava passando para comprar lanche no período de pausa do trabalho até o camarada que estava operando a máquina pesada da obra que estava tendo ali, todo mundo parava para poder dar uma olhada rápida e prestar atenção”, afirma Lourenço.
Ele levou sua bateria para o local e mandou ver, tocando canções de Jorge Ben, Ed Motta, Clara Nunes e Academia da Berlinda, entremeadas com solos improvisados.
“Quem tinha mais tempo, ficava ali de olho. Projetos como esse deveriam se repetir na maior frequência possível. Nossas apresentações estão muito atreladas à vida noturna. Furar essa nossa bolha é preciso”, defende Lourenço, que, como técnico de som e músico, corre uma agenda movimentada nos bares e nas casas noturnas de Campo Grande.



As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação


