Em um meticuloso trabalho de resgate histórico, a jornalista e escritora Mazé Torquato Chotil lança “Lucy Citti Ferreira: A Pintora Esquecida do Modernismo”, biografia que ilumina a vida e obra de uma das artistas mais talentosas e negligenciadas da história da arte brasileira.
A obra, pré-lançada em São Paulo no sábado, inicia uma turnê por Mato Grosso do Sul a partir do dia 27, levando ao público a fascinante história dessa mulher que desafiou convenções e pagou o preço do apagamento histórico.

QUEM FOI LUCY?
Lucy Citti Ferreira (São Paulo, 1911 – Paris, 2008) foi pintora, desenhista, gravadora e professora, com uma trajetória que a levou dos salões modernistas brasileiros às galerias europeias.
Apesar de ter tido uma obra adquirida pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma) em 1942, Lucy permaneceu praticamente desconhecida do grande público, reduzida frequentemente ao epíteto de “musa de Lasar Segall”, com quem teve uma relação artística e afetiva intensa.
Sua história é marcada por desafios pessoais e profissionais: enfrentou dificuldades financeiras, barreiras de gênero e o preconceito de uma sociedade que não estava preparada para aceitar uma mulher dedicada integralmente à sua arte.
“Lucy não foi a única artista apagada da história da pintura e do modernismo brasileiro”, explica Mazé Torquato Chotil.
“Tarsila do Amaral e Anita Malfatti também permaneceram por muito tempo no esquecimento, até que pesquisadoras as resgataram. Muitas outras ainda virão à tona. Esta biografia lança luz sobre uma delas, Lucy, numa tentativa de ‘desenterrá-la’”.
RESGATE
O processo de pesquisa para reconstruir a vida de Lucy demandou anos de investigação em arquivos dispersos e entrevistas com pessoas que conviveram com a artista. Mazé Torquato Chotil, doutora pela Universidade Paris 8 e pós-doutora pela Ehess, mergulhou em fontes como a Pinacoteca do Estado de São Paulo – que recebeu todo o acervo da pintora por meio da Associação Pinacoteca Arte e Cultura (Apac) – além do Museu Lasar Segall, Masp, Muna e Pinacoteca de Bauru.
“Apoiei-me no que descobri sobre sua trajetória por meio das fontes encontradas. O restante precisei imaginar, levantar perguntas, deduzir”, revela a biógrafa sobre os desafios de preencher as lacunas deixadas pelo tempo.
Entre as revelações mais impressionantes da pesquisa está a qualidade excepcional da produção artística de Lucy, reconhecida desde muito cedo. Aos 16 ou 17 anos, ela já produzia telas impressionantes como “Quai – Le Havre” e “Olympio”, que atestam seu talento precoce.
RELAÇÕES
A biografia revela que Lucy circulou entre as principais figuras do modernismo brasileiro, além de sua conhecida relação com Mário de Andrade e Lasar Segall. Tarsila do Amaral, por exemplo, quinze anos mais velha que Lucy, levou um jornalista para conhecer a obra da amiga no sobrado-ateliê de uma pequena casa no bairro do Cambuci, em São Paulo.
Lucy também expôs ao lado de Iberê Camargo, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Portinari, Lívio Abramo, Noêmia, Carlos Prado, Vieira da Silva, Alfredo Volpi e Mario Zanini, entre outros. No entanto, diferente de muitos de seus contemporâneos, não era de muitas amizades, mantendo um perfil mais reservado e introspectivo.
INTRANSIGENTE
A trajetória de Lucy Citti Ferreira ilustra dramaticamente os obstáculos enfrentados por mulheres artistas na primeira metade do século 20.
A biógrafa destaca que Lucy “sempre manteve essa linha, sem concessões, nunca se moldando para agradar a um comprador. Defendia, acima de tudo, a postura de mulher artista, o direito de todo ser humano de se expressar como deseja”.
Essa postura intransigente pode ter contribuído para seu relativo isolamento no mercado artístico da época, dominado por homens e por critérios que frequentemente marginalizavam produções femininas.
LEGADO
O lançamento da biografia coincide com a preparação de uma grande exposição na Pinacoteca de São Paulo prevista para janeiro de 2027 (originalmente marcada para setembro, mas adiada), em que um número significativo de obras de Lucy Citti Ferreira poderá ser apreciado pelo público.
Para Mazé Torquato Chotil, mais importante do que simplesmente “desenterrar” a história de Lucy é permitir que o público redescubra a qualidade excepcional de seu trabalho e a força de vontade que demonstrou enquanto artista.
“Oriunda de uma família burguesa que perdeu recursos, vivia com pouco, fazia do pouco o suficiente. Na maior parte do tempo foi seu próprio modelo, produzindo diversos autorretratos”.
A AUTORA
Mazé Torquato Chotil traz em sua trajetória 14 livros publicados (cinco em francês), entre romances, biografias e ensaios. Nascida em Glória de Dourados (MS), morou em Osasco (SP) e vive em Paris desde 1985, dividindo seu tempo entre a capital francesa, São Paulo e Mato Grosso do Sul.
É fundadora e primeira presidente da União Europeia de Escritores de Língua Portuguesa (Ueelp) e foi editora da “00h00” (catálogo lusófono). Em 2022, recebeu o Prêmio de Biografia da Academia Internacional de Literatura Brasileira (Ailb) pela obra “Maria d’Apparecida: negroluminosa voz”, outro resgate fundamental de uma artista brasileira negra que enfrentou as barreiras do racismo e do sexismo em sua trajetória.
IMERSÃO
Escrever uma biografia é sempre uma jornada de imersão e descoberta, que cria laços peculiares entre biógrafo e biografado. Mazé Torquato Chotil descreve seu relacionamento com Lucy durante o processo:
“Durante a pesquisa e escrita, ‘a personagem’ – neste caso, Lucy – eu a imaginava comigo, em um canto, observando e se perguntando como eu me sairia com as informações que ela não deixou”.
A autora brinca com essa relação de cumplicidade e tensionamento. “Eu ia brigando com ela em pensamento, tentando reunir todas as peças do quebra-cabeça para dar vida à sua verdadeira personagem”.
Esse processo íntimo de diálogo com o passado resulta em uma biografia que transcende o relato factual para se tornar uma conversa vibrante entre duas mulheres separadas pelo tempo, mas unidas pela paixão à arte e à memória.
SERVIÇO
O livro “Lucy Citti Ferreira: A Pintora Esquecida do Modernismo” está disponível nas principais livrarias e no site da Editora Patuá.
Contatos com a autora podem ser feitos pelo e-mail: [email protected].

Neli Marlene Monteiro Tomari e Yosichico Tomari, que hoje comemoram bodas de ouro, 50 anos de casamento - Foto: Arquivo Pessoal
Donata Meirelles - Foto: Marcos Samerson


