“No âmbito de nosso regionalismo, romântico ou realista, nada há que supere ‘Inocência’ em simplicidade e bom gosto”. Alfredo Bosi
Na vastidão bucólica do sertão brasileiro, onde os raios dourados do sol acariciam a terra árida e os ventos sussurram histórias antigas, emerge a obra-prima literária “Inocência”, do talentoso Visconde de Taunay – Alfredo D’Escragnolle Taunay.
Como um entrelaçamento de cores, sons e emoções, esta narrativa nos transporta para um mundo de amores puros e obstáculos intransponíveis, pintando um retrato rico das complexidades do coração humano e da essência da terra.
Alfredo Bosi, em sua “História Concisa da Literatura Brasileira”, diz a respeito de “Inocência”, de Visconde de Taunay: “Por temperamento e cultura, o Visconde de Taunay tinha condições para dar ao regionalismo romântico a sua versão mais sóbria. Homem de pouca fantasia, muito senso de observação, formado no hábito de pesar com inteligência as suas relações com a paisagem e o meio (era engenheiro, militar e pintor), Taunay foi capaz de enquadrar a história de ‘Inocência’ (1872) em um cenário e em um conjunto de costumes sertanejos onde tudo é verossímil. Sem que o cuidado de o ser turve a atmosfera agreste e idílica que até hoje dá um renovado encanto à leitura da obra”.
Taunay, escritor habilidoso, recria a paisagem sertaneja com pinceladas verbais vívidas, e surge com a inovação dos cenários e tipos vivos. Sua obra condensa a paisagem, o meio e o povo. Ganha destaque no Romantismo por introduzir, com “Inocência”, um estilo regionalista nutrido pelo desejo de mostrar o Brasil que conheceu em suas viagens pelo interior.
O sertão é retratado não apenas como um cenário, mas como um personagem silencioso, marcado por suas grandiosidades e desafios. As planícies, os riachos ondulantes e a vegetação resiliente compõem um palco imponente para as vidas que habitam essa terra de contrastes – Sant’Anna do Paranaíba.
São palavras de Taunay: “O estilo suficientemente cuidado e de boa feição vernácula preenche bem o fim, revestindo do prestígio da frase descrições perfeitamente verdadeiras em que procurei reproduzir, com exatidão, impressões recolhidas em pleno sertão...”.
No centro dessa singular gama de cenários e sentimentos está Inocência, uma jovem cujo nome em si reflete sua pureza e ingenuidade. Ela é o fulcro da narrativa, um espírito que se desdobra com a delicadeza de uma flor sertaneja. Inocência personifica a simplicidade que muitas vezes contrasta com as tramas intrincadas da vida adulta.
“Vinha vestida de uma saia de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma grande manta da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegância e pequenez...”.
Na trama, o jovem Cirino e o poderoso Manecão surgem como figuras polarizadas de afeto e desafio. Cirino, o galante apaixonado, carrega consigo um amor tão genuíno quanto a brisa fresca da manhã. Seus sentimentos por Inocência florescem em um romance doce e esperançoso, mas são confrontados com os obstáculos impostos pelas diferenças sociais.
Por outro lado, Manecão personifica a brutalidade da vida no sertão, seus desafios e as complexidades que surgem quando o amor se entrelaça com o poder. Sua figura colossal e sombria cria um contraste marcante com a delicadeza de Inocência, destacando a batalha constante entre o desejo de domínio e a busca pela verdadeira compreensão.
SÍMBOLO DE MS
Por meio das interações desses personagens, muitos deles inspirados por pessoas que o autor encontrou em suas andanças pelo sertão, Taunay explora a natureza humana em todas as suas facetas.
Ele captura a luta entre a paixão e o dever, o amor e a traição, o desejo de liberdade e a realidade das convenções sociais. Essas complexidades espelham os desafios do sertão, onde a terra seca se encontra com o florescimento da vida – o espírito do sertão!
“Inocência” transcende o tempo e as páginas, envolvendo-nos em uma trama de amores puros e dilemas intrincados. Visconde de Taunay tece uma narrativa que não é apenas um romance, mas uma experiência literária completa, pintada com a paleta das emoções humanas e a textura da paisagem sertaneja. Por meio dessa obra, somos convidados a contemplar a essência do Brasil e a complexa tapeçaria do coração humano.
“Inocência” é indiscutivelmente um romance símbolo do estado de Mato Grosso (do Sul). Como uma obra literária que se funde com a rica realidade cultural e geográfica dessa região do Brasil, a obra transcende sua narrativa para se tornar um reflexo autêntico da identidade (sul-)mato-grossense.
O romance não apenas utiliza o cenário do sertão como pano de fundo, mas também incorpora elementos da vida, da cultura e das tradições locais de uma maneira que ecoa com ressonância.
A vastidão dos campos, os rios serpenteantes e as nuances da vegetação tornam-se personagens por si só, e Visconde de Taunay, com sua prosa habilidosa, dá vida a esses elementos, criando uma sinfonia de imagens que capturam a essência de Mato Grosso (do Sul).
Além disso, a própria protagonista, Inocência, é uma figura que personifica os traços do Estado. Sua pureza, sua ligação profunda com a natureza e sua inocência frente as complexidades do mundo refletem a simplicidade que muitas vezes caracteriza o interior brasileiro. Seus dilemas amorosos e os conflitos entre seus sentimentos e as realidades sociais ressoam com as lutas do povo dessa região.
A dualidade dos personagens Cirino e Manecão também pode ser lida como uma metáfora das dinâmicas sociais, econômicas e políticas que moldaram Mato Grosso (do Sul) ao longo dos anos. Cirino, o jovem apaixonado e esperançoso, reflete a busca por um futuro melhor, enquanto Manecão, com seu poder e dominação, representa os desafios e as injustiças enfrentadas pelas comunidades locais.
Dessa forma, “Inocência” não é apenas um romance ambientado em Mato Grosso (do Sul), mas sim um espelho literário que reflete a alma dessa região. Sua simbologia, rica em metáforas e representações, contribui para a construção de uma identidade cultural que ecoa além das páginas, celebrando a riqueza da vida, da terra e das histórias (sul-)mato-grossenses.
RETRATO DO INTERIOR
O valor literário de “Inocência” é inegável e profundo, conferindo-lhe um lugar de destaque na literatura brasileira. Essa obra não apenas enriqueceu o panorama literário do Brasil, mas também desempenhou um papel significativo no desenvolvimento e na consolidação de movimentos literários, contribuindo para a compreensão da sociedade brasileira e de suas complexidades.
Retrato do Brasil interiorano, “Inocência” tem a capacidade de transportar os leitores para o cenário do interior do Brasil do século 19, especialmente nas regiões sertanejas.
Por meio de uma linguagem vívida e rica em detalhes, a obra oferece um olhar autêntico sobre a vida, a cultura, as tradições e os desafios enfrentados pela população dessas áreas remotas. Essa representação do Brasil profundo contribui para uma compreensão mais profunda das raízes culturais do País. (continua na página B2)



Cristianne e Rinaldo Modesto de Oliveira
Isabella Suplicy


