Um adolescente do interior está louco para ver o show de seu ídolo do rap em Campo Grande. Mas o pai, sem grana, tenta dissuadi-lo da ideia. Até que a possibilidade de ajuda de um tio, que é professor na capital, surge como alternativa.
Ele abre as portas da esperança para o sobrinho e para a irmã desse, que é mais velha e também seguirá para CG, por ordem do pai, para cuidar do mano caçula. Uma vez em CG, a coisa muda de figura. Mesmo prometendo ingresso e uber, e oferecendo guloseimas, o tio condiciona o presente.
Ele quer que os sobrinhos resolvam por conta própria enigmas - daí o título do filme - de raciocínio lógico, ecoando entre os familiares o trabalho que desenvolve como docente.
Pensa que dando um sentido prático a problemas matemáticos e equações cabeludas, por meio de jogos e outros brinquedos, ou por meio de alguns perrengues do rolê do dia-a-dia, os jovens criarão autoconfiança e estarão mais aptos para os desafios da vida. Mas o próprio Andread, nome do tio, anda com a rotina meio descompensada, à beira de um burn-out.
É por aí que segue a trama de “Enigmas no Rolê”, primeiro longa-metragem de Ulísver Silva. O cineasta de 41 anos formado em rádio e TV na UCDB se “especializou” na área audiovisual “indo a São Paulo fazer diversos cursos que eu podia pagar” - roteiro, direção, produção, captação de recursos, distribuição etc. A leitura de livros e outras formas autodidatas também fizeram parte de sua formação, além da atuação profissional, que inclui o trabalho em televisão, publicidade e produtoras.
“Depois de ‘As Invenções de Akins’ (média-metragem infantil de 2018), senti que estava maduro para enfrentar o desafio de fazer o primeiro longa-metragem. Entrei num processo de brainstorm e análise sobre qual seria a temática. Sabia que seria alguma coisa a ver com o universo infanto-juvenil, que é um universo que gosto e com o qual já havia trabalhado”, conta”, diz Ulísver. Antes do média ficcional de 2018, ele tinha dirigido dois documentários - “Sanda – O Boxe Chinês” (2013) e “Encontro de Crespas e Cacheadas” (2016).
Ele segue contando que a inspiração para o longa veio do tempo em que teve contato, como aluno, com o método Supera. O sistema de ensino usa jogos de desafios lógicos para reforçar o raciocínio.
“Eu havia gostado muito da experiência de ter aulas nessa escola. E eu ficava pensando ‘puxa vida, se esse método fosse aplicado em todas as escolas públicas, várias crianças e adolescentes de origem humilde poderiam estar com suas mentes, seu raciocínio, mais preparado para enfrentar esse mundo competitivo em que a gente vive’”, afirma.
“E mais preparado para resolver problemas, não só problemas nos estudos, no mundo do trabalho, mas também na vida”, reflete Ulísver. “Fui acrescentando outras coisas nessa história que brotou. Minha experiência pessoal, a de amigos de baixa renda que foram os primeiros da família a ter acesso à faculdade e como isso impactou a relação deles com as famílias, as diferenças de criação entre garotos e meninas, a questão da importância de a gente se preparar para enfrentar um mundo competitivo do trabalho na vida adulta”, diz ele.
“E também um pouco da cultura urbana do rap e do hip-hop. Misturei todas essas influências nesse caldo e transformei no roteiro”, prossegue o realizador, que, com “Enigmas no Rolê”, torna-se o primeiro cineasta negro a ter escrito, dirigido e produzido um longa-metragem de ficção em Mato Grosso do Sul, quase seis décadas após a primeira narrativa ficcional de longa duração feita no estado, “Paralelos Trágicos” (1966), de Abboud Lahdo, tido, por sua vez, como pioneiro entre as experiências da comunidade árabe brasileira no cinema.
Para além do esforço de realização, de ter finalizado um longa com menos de R$ 800 mil (advindos de editais públicos com recursos federais - Lei Paulo Gustavo - e do Governo do Estado), o mérito de Ulísver chama a atenção pelo feito artístico em si. O diretor não queria um enredo permeado de enigmas com “aventuras mais arriscadas, muita ação, assassinos”, como identifica em tramas da linha de “O Código Da Vinci”, Indiana Jones ou Sherlock Holmes. A intenção era ser leve, divertir mas com densidade para fazer pensar.
E isso o seu filme consegue. Ainda que, aqui e ali, exista algo a ser aparado na manufatura de “Enigmas”, sua capacidade de envolvimento e a cor local de MS que o filme consegue lançar na tela, ficam desde já como qualidades reconhecíveis. Boa parte dessa beleza está no carisma do elenco, encabeçada por Guilherme Godoy (Andread, o tio), Maria Rita Franco (Eduarda, a sobrinha) e Raul Henzo (Edinho, o sobrinho).
O público tem a chance de conferir com os próprios olhos neste domingo (10) pelo canal do filme no YouTube, às 17h30 (horário de Mato Grosso do Sul). O lançamento foi escolhido para este mês, porque marca as reflexões sobre o Dia da Consciência Negra.
O acesso à transmissão - pelo link youtube.com/@EnigmasnoRole - é gratuito e haverá o sorteio de videogame PlayStation.
“O meu desejo é que o filme consiga alcançar o máximo possível de público, em especial os jovens de comunidades periféricas. E que seja selecionado em festivais importantes e que a repercussão dele possa trazer oportunidades para todos os envolvidos. E se conseguirmos gerar esse interesse, quem sabe algum streaming nos possibilite fazer uma sequência ou transformar em uma série. Quem sabe?”, diz o diretor.