Marcada de recalques e de uma desfaçatez que é um prato cheio para qualquer psicanalista, a tal filosofia redpill é uma das facetas recentes do mais puro machismo. Esse ataque é feito por homens que se intitulam coaches da masculinidade, como Thiago Schutz, que ameaçou de morte nas redes sociais a atriz, roteirista e influenciadora Livia La Gatto.
Alguns perfis nacionais que desvalorizam as mulheres possuem milhares – na verdade quase milhões – de seguidores, e o assunto ganha ainda mais relevância na semana em que se comemora o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a ser celebrado amanhã.
Os índices de violência contra a mulher de qualquer faixa etária no Brasil mostram crescimento no último ano, quando, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 18 milhões de mulheres foram violentadas. São mais de 50 mil vítimas por dia.
Primeira iniciativa no País a dispor de trabalho conjunto de estudiosas sobre o tema, o livro “Mulheres, Direitos Humanos e Empresas”, recém-lançado pela editora Almedina Brasil, conecta pesquisas relacionadas à sobrevivência e à dignidade no ambiente corporativo.
A obra coletiva reúne estudos de 29 acadêmicas de excelência no Brasil e visa garantir a projeção acadêmica feminina em relevantes espaços de pesquisa, tanto nacionais quanto internacionais.
MINERAÇÃO
O olhar feminino tem grande importância para a discussão sobre as empresas e os direitos humanos, sobretudo pelas mulheres serem as vítimas preferenciais das grandes violações praticadas na esfera empresarial – e, também, por serem agentes de produção do conhecimento transformador nesta realidade.
Mesmo quando a questão de gênero não está diretamente em pauta, há uma contribuição diferenciada que a reflexão a partir deste lugar de fala traz.
A não observância dos direitos humanos no ambiente corporativo, a responsabilidade socioambiental dos empreendimentos, os riscos da atividade para a segurança e a integridade das mulheres e o papel das empresas diante das mudanças climáticas são alguns dos assuntos tratados na publicação, interconectados pelo tema central que dá nome à obra.
“Por sua vez, a atividade empresarial gera riscos que podem ter graves consequências para a segurança e a integridade das mulheres. Em particular, as indústrias de gás, de óleo e de mineração são associadas ao agravamento da violência contra as mulheres nas comunidades em que operam”, destaca uma passagem do texto.
“Não apenas em suas operações regulares, mas em casos de desastres tecnológicos – aqueles causados pela ação humana –, as mulheres parecem ser gravemente vulnerabilizadas em razão das dinâmicas de gênero presentes na sociedade”, segue a página 49 de “Mulheres, Direitos Humanos e Empresas”.
OLHARES FEMININOS
O trabalho é coordenado pelas professoras Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM); Danielle Anne Pamplona, titular da graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); e Melina Girardi Fachin, associada dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Para as autoras, a publicação representa a “união pelo reconhecimento da relevância dos olhares femininos para ampliar o diálogo e encontrar soluções atentas às necessidades de desenvolvimento no ambiente de trabalho”.
Como mulheres, pesquisadoras, defensoras de direitos humanos, professoras, mães, chefes de família, elas estão atentas ao seu papel como transformadoras da realidade social.
SEM VOLTA
Para a psicóloga Sandra Armoa, que leciona em disciplinas da área em uma instituição de ensino superior de Campo Grande, há uma espécie de descompasso no seio da juventude, que faz ideias estapafúrdias como a filosofia redpill – pinçada do enredo do longa-metragem “Matrix” (1999) – obterem tamanha adesão.
“São jovens que têm crenças de desvalor e de desamparo, resultado de uma vida social na qual não há esperança”, alerta a especialista, que é doutora em Psicologia.
“Essas crenças originárias no contexto ambiental e na infância geram outras intermediárias na tentativa de buscar estratégias para sobreviver em um mundo tão competitivo, onde não se oferece trabalho nem condições de vida. Infelizmente, o que eles querem nunca mais teremos, pois a vida não tem volta”, afirma a estudiosa do comportamento humano.
ASSUSTADOR
Para a psicanalista e também psicóloga e professora Adriana Sordi, a redpill “se trata de um movimento de grupos masculinos que se identificam com uma cultura que exalta essa diferença entre homens e mulheres”. O problema é que, segundo a especialista, ao exaltar essa diferença, essa filosofia coloca o homem de uma forma superior.
“Nisso entra a grande questão: a prevalência da superioridade masculina. Eles colocam, então, que na sociedade as mulheres estariam sendo privilegiadas de algum modo, e é aí que fundam esse grupo como uma defesa em relação aos homens. Se colocam como opositores ao feminismo, que vem colocar as mulheres e os homens em posição de igualdade de direitos”, afirma Adriana.
“As pesquisas mostram que as mulheres são maioria nos cursos de pós-graduação, e a maioria de doutores no Brasil é de mulheres. Só por aí já cai por terra [a filosofia redpill], porque eles colocam o homem como superior a nível de inteligência e de outras questões, como desenvoltura e relações sociais”, mapeia a psicóloga.
“Isso é assustador, pois a mulher tem o direito simplesmente de ser livre, de dirigir, de ser o que quiser. Aí, quando vem uma filosofia falando que o homem tem uma superioridade sobre a mulher, a gente está retrocedendo muito. Na história da humanidade, né?”, diz Adriana Sordi, para quem a “novidade” pode causar ainda muito estrago.
EM MS
“No meu e no ponto de vista dos pesquisadores sérios no assunto, um movimento que coloca que homens e mulheres não estão em pé de igualdade e que os homens são superiores vai afetar muito. Sabemos que é para promover uma violência de gênero. Ainda mais se pensarmos em Mato Grosso do Sul, que ocupa os rankings de violência contra a mulher, de feminicídios, e que está entre as maiores taxas do País”, alerta a professora.
“Homens e mulheres têm os mesmos direitos, de ocuparem os mesmos cargos, de terem um salário equivalente ocupando as mesmas funções. Um movimento desse, que fala de uma superioridade, a gente está falando de violência. A partir do momento que brancos se acham superiores a negros, por exemplo, a gente também está falando de violência”, analisa Adriana.
“A gente pode pensar em qualquer segmento nesse sentido, de brancos e de negros, de homens e de mulheres, de indígenas e de não indígenas. Isso só incentiva a violência. Homens e mulheres devem pensar a respeito. Assim como você está escrevendo, penso que as pessoas não podem reproduzir tais questões. É pensar: ‘Será que o homem lavando a louça vai se tornar menos macho?’”, provoca.
O MELHOR CAMINHO
Para Adriana Sordi, o melhor caminho é a educação. “A discussão e a própria educação das nossas crianças; essa criança entendendo que não é nem superior nem inferior, mas que está em pé de igualdade, seja de gênero ou de raça, com os demais.
Isso é fundamental, porque estamos em pleno século 21 e me parece que tem um retrocesso da humanidade aí”, ressalta.
E conclui: “Esse discurso só favorece a violência em todos os segmentos sociais. As mulheres ocupando o mesmo cargo ganham menos que homens. Mas por quê? Mulheres são chefes do lar. São elas que, muitas vezes, ficam com os filhos. Então, qual o porquê disso? Penso que a discussão, a educação, o diálogo, a informação, o pensar e o analisar são sempre o melhor caminho”.




