Em um país de dimensões continentais como o Brasil, inúmeras histórias regionais permanecem à sombra dos grandes eventos nacionais.
Em Mato Grosso do Sul, uma dessas narrativas esquecidas é a de Bento Xavier, o líder maragato que, no início do século 20, plantou a semente do movimento divisionista que culminaria na criação do Estado, em 1977.
A história desse personagem complexo e quase apagado dos livros didáticos está sendo resgatada pelo pesquisador e escritor Sergio Cruz, que acaba de lançar um livro dedicado à sua trajetória.
Em uma conversa descontraída, Sergio Cruz, de 83 anos, veterano jornalista, ex-deputado federal e preso político durante a ditadura militar, revela os detalhes de sua mais recente investigação histórica. Sua fonte de inspiração para mergulhar na vida de Bento Xavier veio de leituras antigas.
“O Bento Xavier apareceu para mim no livro do Paulo Coelho Machado, ‘A Rua Velha’. Foi o primeiro livro do Paulo Coelho Machado. Então, eu vi, ele colocou lá esse Bento Xavier. E eu não via esse Bento Xavier em lugar nenhum, eu só via naquele livro”, recorda o escritor.
QUEM FOI BENTO XAVIER?
Bento Xavier foi um coronel maragato, um dos protagonistas da Revolução Federalista (1893-1895), que opôs os maragatos (federalistas) aos pica-paus (republicanos). Derrotados no Sul do País, muitos maragatos migraram para o então sul de Mato Grosso, próximo à fronteira com o Paraguai.
Entre esses migrantes estavam Bento Xavier e João de Barros Cassal, um intelectual que teria fornecido a base ideológica para seus ideais.
“O Bento Xavier liderou o divisionismo aqui no antigo Mato Grosso. Eles plantaram o embrião”, explica Sergio Cruz.
O conflito central não era inicialmente pela divisão territorial, mas por autonomia e poder local. A plataforma de Xavier, influenciada por Barros Cassal, visava “formar aqui no sul um grupo de lideranças para administrar o sul”.
O objetivo era desafiar o domínio econômico e político da Companhia Matte Larangeira, aliada às elites do norte do estado (atual Mato Grosso).
“O estado era uma grande companhia. A empresa mantinha o estado porque o estado precisava de dinheiro e tomava emprestado da companhia. A Matte Larangeira era o estado dentro do estado”, detalha Cruz.
A luta era por terra e representatividade. “O sul não podia ter candidatos. Os candidatos eram todos do norte”. A insatisfação culminou em um movimento insurrecional.
Bento Xavier formou um exército particular e, usando táticas de guerrilha aprendidas no Rio Grande do Sul, realizou incursões entre 1907 e 1911, refugiando-se no Paraguai quando pressionado.
“Foram cinco ou seis incursões dele aqui em sete anos. Ele usou aqui a mesma tática que usava na Revolução Federalista. Ele vinha, ficava por um tempo e fazia uma mobilização aqui, tomava uma fazenda ali, ocupava alguns espaços”.
A guerra durou sete anos, mas é um evento que, segundo Cruz, “a história de Mato Grosso do Sul não reconhece”. Derrotado, Bento Xavier foi obrigado a deixar a região. Sua memória foi sistematicamente apagada.
“Quando Bento aparece na história geral é como um contrabandista, um arruaceiro e tal, não tem nenhuma rua com o nome dele aqui no Estado. Só tem uma rua no Brasil com o nome dele, que é lá em Santana do Livramento, onde ele nasceu”.
ALÉM DE HERÓI OU VILÃO
Sergio Cruz evita rótulos simplistas. Bento Xavier não era um herói imaculado, mas um idealista complexo.
Cruz conta um episódio que ilustra seu caráter: após prestar um serviço aos coronéis do norte, ele se recusou a ser agraciado por eles.
“Mandaram uma carta para ele cobrar quanto é que ele tinha gastado, que era para pagar, né? E ele respondeu: ‘Não, eu fiz porque eu tinha que fazer’. Aí você vai ver o caráter do cara”.
O LIVRO
O novo livro é um desdobramento de uma pesquisa maior sobre a fundação de Mato Grosso do Sul, lançada no ano passado. “Esse livro na verdade é um segmento de um primeiro que eu lancei em 2023, que é a ‘História da Fundação de Mato Grosso do Sul’”, esclarece o autor.
O lançamento oficial ocorreu na última semana, no Festival de Inverno de Bonito, e o autor planeja agendas em Campo Grande e Bela Vista, epicentro das ações de Bento Xavier.
RESISTÊNCIA
A paixão de Sergio Cruz pela história nasceu de sua experiência política. Eleito deputado federal em 1984, mudou-se para Cuiabá sem conhecer a fundo a história divisionista.
“Quem era divisionista? Onde é que tinha começado? Onde é que tinha terminado? Por que o pessoal queria essa divisão?”
Essa curiosidade o levou a criar um diário da história de Mato Grosso, uma coleção com 1.083 verbetes que serve de base para seus livros.
Sua trajetória é marcada pela resistência. Preso no dia 2 de abril de 1964, ficou um mês encarcerado em Cuiabá, em um centro que ele descreve como local de tortura.
“Cada dia ia um para a tortura, né? Eu tive sorte, eu estava marcado para um dia, mas eu saí na véspera”. Sua soltura, acredita, foi fruto de articulação política.
Questionado sobre os paralelos entre a polarização política da época e a atual, Cruz é taxativo: “É a mesma coisa. No período antes do golpe e durante todo o golpe foi assim, sempre teve isso”.
A diferença, pondera, é que hoje há mais espaço para contra-argumentação. “A vantagem é que hoje a gente pode se manifestar. O cara vem contra você, mas você também pode fazer alguma coisa. Naquele tempo não tinha esse negócio, não”.
SEM PARAR
Com 83 anos completados no início deste mês, Sergio Cruz não planeja parar. Seu próximo projeto é o livro “À Margem da História”, que compilará “acontecimentos que não entraram na história”, como uma briga de circo fatal em 1913, histórias de tesouros enterrados e até uma notícia curiosa sobre um “vulcão ativo em Miranda”.
“Meu pai falava: ‘Meu filho, o dia que você não tiver projeto, você pode ir, né?’ Então, eu tenho projetos”, conta Sergio Cruz.


