A Rumo Malha Oeste pode ter de pagar até R$ 2 bilhões de indenização ao governo federal por ter “abandonado” os 1.973 quilômetros da ferrovia que liga Mairinque (SP) a Corumbá com o fim do contrato de concessão, previsto para junho de 2026. A empresa, no entanto, já demonstrou que vai questionar o valor, tentando reverter a cobrança e, em vez de pagar, receber indenização por investimentos feitos ao longo do período.
O cálculo do ressarcimento ainda será definido, mas pode alcançar esse montante se a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) adotar critérios semelhantes aos discutidos no relatório final da Comissão de Solução Consensual (CSC) do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2023.
No documento, a indenização em outro trecho administrado pela Rumo – entre Presidente Prudente (SP) e Presidente Epitácio (SP) – foi estimada entre R$ 2,1 milhões e R$ 2,7 milhões por quilômetro. À época, chegou a ser cogitado um valor médio de R$ 2,5 milhões, mas a proposta não foi aceita.
Outro processo em andamento no setor ferroviário pode servir de parâmetro para o cálculo da indenização da Malha Oeste. Trata-se da devolução de 3.020 km da Ferrovia Transnordestina Logística (FTL). Na semana passada, o TCU realizou um painel de referência com membros da CSC para debater os valores.
A FTL, administrada desde 1997, opera apenas 1.200 km de trilhos, entre os portos de Itaqui (MA) e Mucuripe (CE), e deixou o restante inoperante ou substituído por metrôs e trens urbanos em capitais do Nordeste.
A ANTT, como no caso da Malha Oeste, aponta que a concessionária descumpriu obrigações contratuais, o que motivou o governo federal a propor uma cobrança de R$ 3,1 bilhões: R$ 1,7 bilhão em indenização e R$ 1,4 bilhão para modernização dos trechos remanescentes.
Esses casos têm pontos em comum. As concessões começaram quase no mesmo período e exigiam investimentos e manutenção, mas grande parte das linhas acabou abandonada.
Se a ANTT aplicasse o mesmo parâmetro usado no caso paulista, entre Presidente Prudente e Presidente Epitácio, a indenização da Malha Oeste poderia chegar a valor de R$ 4,1 bilhões a R$ 5,3 bilhões. No entanto, esse modelo deve ser descartado, já que a agência publicou em janeiro a Instrução Normativa nº 1/2025, com critérios atualizados para o cálculo dos bens ferroviários.
Com as novas regras, os valores devem ser menores. O caso da FTL demonstrou essa tendência: o quilômetro a ser ressarcido ficou em cerca de R$ 1 milhão, reduzindo a estimativa da Rumo para algo em torno de R$ 2 bilhões.
DEFESA
A Rumo Malha Oeste, entretanto, pretende contestar o cálculo. Mesmo após ter sido autuada 74 vezes, entre 2021 e 2024, por abandono da ferrovia, a empresa argumenta em processos administrativos que parte da depreciação é natural e que investimentos realizados devem ser compensados.
Em defesas apresentadas neste ano, referentes aos trechos entre Indubrasil (Campo Grande) e Corumbá e entre Mairinque e Bauru (SP), o escritório Almeida & Alvarenga afirma que a concessionária, “além de estar comprometida com os investimentos essenciais à continuidade do serviço de transporte ferroviário até a assunção pela nova concessionária, ressalta-se que a Rumo, a partir do 2º termo aditivo ao contrato de concessão, também se comprometeu a levantar a base de passivos que serão objeto de memória de cálculo para identificação do saneamento deste custo, para fins de encontro de contas entre as partes contratantes”.
O escritório também sustenta que, caso os bens vinculados à concessão estejam depreciados, essa depreciação deve constar na base de passivos e “ser objeto de indenização”.
A argumentação se apoia em cláusulas do termo aditivo, que determinam: “O valor devido entre as partes, a título de indenização pela extinção da Concessão, será calculado pelo saldo dos investimentos vinculados a bens reversíveis não amortizados ou depreciados, nos termos do levantamento da base de ativos aprovado pela ANTT”.
A ANTT, porém, discorda. A agência afirma que sua “missão é justamente evitar que a malha ferroviária nacional se transforme em um passivo remunerável por abandono calculado”.
Segundo Mariana Sánchez, chefe de gabinete da Superintendência de Transporte Ferroviário (Sufer), “reconhecer a depreciação, portanto, não se admite apenas a título de argumentação, como pretende a concessionária, mas sim diante da crua realidade dos fatos, fartamente documentada e tecnicamente comprovada pela equipe de fiscalização da ANTT. As imagens anexadas ao relatório de fiscalização não são meras ilustrações decorativas – são evidências incontornáveis de um estado avançado de deterioração que não decorre do tempo, mas da negligência”.
Ela reforça que “a depreciação não é hipotética: é concreta, visível e perigosa. Tratar esse cenário como um exercício de retórica defensiva é menosprezar a inteligência da administração pública e subestimar o papel regulador desta agência”.
Em outro processo, sobre o trecho entre Mairinque e Bauru, o superintendente Alessandro Baumgartner destacou que a concessionária “não tem aplicado recursos necessários para zelar adequadamente a via permanente”.
O relatório técnico apontou 476 restrições de velocidade e falhas no cumprimento das normas ABNT NBR nº 16.387/2020 e NBR nº 16.845/2020, além de “invasões na faixa de domínio e furto de trilhos, o que evidencia a inexistência de vigilância patrimonial no trecho inspecionado”.
CRITÉRIOS
Com a Instrução Normativa nº 1/2025, a ANTT flexibilizou os critérios de avaliação, especialmente em relação a trilhos, dormentes e aparelhos de mudança de via. Antes, a troca de todos os materiais era obrigatória, mesmo que estivessem em bom estado.
Agora, a indenização considera parâmetros distintos para materiais servíveis e inservíveis, conforme explica Mariana Carvalho, pesquisadora do Observatório do TCU da FGV Direito SP, em parceria com a Sociedade Brasileira de Direito Público.
De forma semelhante, os dormentes inservíveis passaram a ter limites aceitáveis, definidos de acordo com o raio das curvas e demais características da via.
Segundo o TCU, o plenário do Tribunal homologou, em 6 de dezembro de 2023, o termo de solução consensual que resolveu controvérsias sobre a devolução do trecho entre Presidente Prudente e Presidente Epitácio.
O ministro Jorge Oliveira, relator do processo, destacou que “a devolução de trechos ferroviários inoperantes ou antieconômicos é uma oportunidade de extrema importância para o desenvolvimento do modal ferroviário no Brasil”.
Na ocasião, o TCU lembrou que 64% da malha ferroviária brasileira está subutilizada ou inoperante e que as devoluções podem ser parte da solução. O acordo envolveu o Ministério dos Transportes, o Dnit, a ANTT, a Rumo e unidades do próprio Tribunal e tratou também da metodologia para cálculo de indenizações.
A solução consensual definiu, entre outros pontos, os limites de dormentes inservíveis (entre 10% e 20%, conforme o tipo de via), a diferença de valor entre trilhos novos e usados e a retirada de taxas de manutenção e depreciação para evitar cobranças em duplicidade.
Esse modelo serviu de base para a Instrução Normativa nº 1/2025, que hoje orienta o cálculo da indenização da Malha Oeste.




