Em minha juventude, não tínhamos o hábito de beber vinho. A importação de boas garrafas era inviável para nossos parcos recursos, e os vinhos nacionais eram sofríveis.
A curiosidade e o destemor próprios da adolescência me levaram a experimentar o que seria minha mais traumática lembrança de excesso na ingestão alcoólica: um porre do famoso Sangue de Boi.
O impacto foi tão grande que, por anos, o simples cheiro de vinho me causava náuseas e eu cantava, sempre que me ofereciam, a canção de Chico Buarque que pedia para que o cálice de vinho fosse afastado.
Nas últimas décadas, o Direito do Trabalho foi demonizado como sinônimo de atraso e de obstáculo para o desenvolvimento do País, o que se potencializou nos últimos seis anos como ressonância ao discurso único de triunfo do neoliberalismo sobre qualquer outra ideologia econômica que não tenha o individualismo e o império do deus mercado como o centro de poder.
Em 2016, com o golpe que culminou na queda da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer ao cargo, ganhou corpo a campanha contra a “velha senhora” CLT.
Foi então proposta a denominada reforma trabalhista, anunciada como a solução de todos os nossos males, apesar de, no entanto, não haver criado os cinco milhões de empregos prometidos, fracassando ainda em promover a anunciada formalização das relações de trabalho.
Entretanto, a reforma trabalhista ou a “modernização trabalhista”, como gostavam de chamá-la seus defensores, trouxe benefícios apenas aos empregadores – aos maus empregadores –, que viram diminuir o número de ações trabalhistas sem que diminuíssem as fraudes e minguar a força dos sindicatos, com quedas nas arrecadações de cerca de 90%.
O último governo ainda chegou a defender e propor o fim de qualquer regulação trabalhista. A balança que sempre pendeu para o capital abandonou de vez o trabalho.
As fake news apresentavam mentiras como certezas, como a que dizia estarem no Brasil 98% das ações trabalhistas de todo o mundo ou que inexiste legislação trabalhista nos Estados Unidos.
Uma das mais graves heranças dessa sórdida campanha contra a CLT foi, sem dúvida, a liberalização da terceirização, que prometia mais empregos e melhores condições de trabalho e entregou exatamente o oposto.
Alertamos, ainda em 2017, que 94% dos trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão resgatados eram terceirizados (cerca de 60 mil desde que passaram a registrar os resgates, em 1995, segundo os dados expostos pelo Observatório Smartlab do Ministério Púbico do Trabalho e da OIT).
Ainda assim, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) optou por julgar constitucional a irrestrita terceirização, vigorosamente defendida por empresários, parlamentares e até por alguns magistrados do trabalho, supervalorizando o princípio da livre iniciativa empresarial em detrimento dos princípios do valor social do trabalho, da dignidade do trabalhador e da justiça social.
Com isso, consolidou-se o entendimento de que é possível existir empresa sem empregados, apenas com terceirizados.
Há poucos dias, fomos surpreendidos com a notícia de que 207 trabalhadores —195 aliciados na Bahia — foram resgatados na lindíssima região serrana do Rio Grande do Sul, onde, além das abjetas condições de trabalho análogas à escravidão, eram submetidos a tortura mediante choques elétricos, spray de pimenta e espancamento.
Ato contínuo, as três vinícolas envolvidas se apressaram em declarar que tais trabalhadores eram empregados de empresa terceirizada e que não tinham nenhum controle sobre eles.
O argumento é exatamente o mesmo utilizado por fazendeiros flagrados no interior do Maranhão, na mesma data, quando foram resgatados 17 trabalhadores, e pela quase totalidade dos empresários flagrados submetendo trabalhadores a condições de trabalho análogas à escravidão.
Na verdade, a terceirização somente se viabiliza pela diminuição dos custos e da responsabilidade para a empresa que toma os serviços.
Ao ler a notícia dos trabalhadores encontrados sob condições equiparáveis à escravidão na produção de enormes e lucrativas vinícolas nacionais, me veio ao estômago uma sensação de asco, agora causada pela revolta diante do ultraje imposto a esses trabalhadores brutalmente explorados e vilipendiados.
Me pergunto, enfim, como se sentem os que defenderam o desmonte da legislação trabalhista e a liberalização da terceirização. Será que, como aquele jovem Ronaldo, o vinho lhes traz agora um sabor amargo?






