A saúde e sua importância nunca estiveram tanto em evidência como nos últimos meses, em decorrência da pandemia do novo coronavírus. A disseminação da Covid-19 alcançou níveis catastróficos, com milhares de casos de contaminação e também de mortes.
Esse avanço da doença forçou os gestores de saúde a se adaptarem para o enfrentamento do quadro pandêmico e seus efeitos.
Puxado por Campo Grande, principalmente, Mato Grosso do Sul vem registrando, nacionalmente, lugar de destaque entre os estados que mais vacinam no País. Na Capital, por exemplo, até o momento, quase 500 mil pessoas foram vacinadas com a primeira dose, o que representa quase 60% de toda a população.
E é nesse cenário que o secretário municipal de Saúde de Campo Grande, José Mauro Pinto de Castro Filho, fala ao Correio do Estado, fazendo uma análise da situação e, inclusive, sobre o legado que a pandemia deve deixar para o setor de saúde.
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CORREIO DO ESTADO – com a diminuição do número de casos de Covid-19, inclusive de internações, qual o cenário das cirurgias eletivas que aguardam por realização?
JOSÉ MAURO – com relação às cirurgias eletivas, elas ficaram suspensas por um bom tempo, praticamente no Brasil inteiro. Temos aí um grande desafio, não só das eletivas, como também de exames e consultas especializadas.
Todos esses procedimentos deixaram de ser realizados, até mesmo em razão dos riscos. Alguns eram pacientes idosos, que precisavam de uma cirurgia, outros, pacientes obesos, que necessitavam de cirurgias bariátricas, e aí toda a nossa energia foi gasta com atendimento aos pacientes críticos [com Covid-19], vagas em CTIs [Centros de Terapia Intensiva] e ampliação de leitos.
Nesse momento foi autorizado o retorno das cirurgias eletivas, no entanto, ainda temos aí uma grande ocupação de leitos. Ainda não chegou o momento em que a gente tenha conseguido iniciar alguns tipos de cirurgia.
Vamos iniciar alguns tipos de cirurgia, sim, vamos começar pela cirurgia geral, por exemplo, cirurgias pediátricas e cirurgias ortopédicas, que são as maiores demandas de nossa rede. Então, passamos a fazer a contratualização de hospitais para onde vão ser encaminhados esses pacientes.
Mas tudo isso de acordo com aquilo que for acontecendo também.
Nós temos um cenário de pandemia, então, temos que observar diariamente os indicadores, tanto de pacientes com sintomas respiratórios quanto de internações, número de óbitos e, paralelo a isso, a vacinação, que a gente está tendo aí uma velocidade interessante, mas longe de terminar.
Ainda serão discutidos – estamos discutindo – vários assuntos que vão estar relacionados com a vacinação, como dos abaixo de 18 anos, abaixo de 12 anos, enfim, a vacinação heteróloga, com a combinação de vacinas. Há trabalhos indicando que pode haver três a quatro vezes maior eficácia quando se mistura [vacinas]. Estamos vendo isso.
Outra discussão sobre a vacina é a terceira dose ou não, de acordo com o cenário de eficiência que temos aqui no Brasil. Tudo isso nos leva a acreditar que a discussão da vacina vai durar algum tempo.
E tudo isso vai impactar o retorno das cirurgias eletivas. A gente vai liberando aquilo que a gente considera, em uma cirurgia eletiva, essencial para o momento.
O senhor tem ideia de quantas pessoas estariam na fila à espera de uma cirurgia eletiva em Campo Grande?
Um número a gente tem, mas muita coisa está defasada. A gente precisa reavaliar os pacientes – talvez alguns até já tenham sido operados.
Até mesmo de pacientes que estão na fila de exames? Afinal, é toda uma cadeia de atendimento.
Sim. Fizemos há pouco um mutirão de ressonância lá no Hospital do Câncer. Não vai parar. O grande problema que eu vejo é a fonte de financiamento. Isso está sendo discutido em nível nacional. Esse é um problema nacional. Qual vai ser a linha de financiamento disso?
O governo do Estado já se antecipou e disse: “Olha, vamos retomar as Caravanas da Saúde”, que são uma fonte de financiamento dos procedimentos. Serve para alguns procedimentos, como oftalmologia, mas a grande maioria é de procedimentos estruturados, que você precisa ter uma rotina de hospital, fluxo de entrada e saída de pacientes.
Eu acredito que a Caravana entre como uma fonte financiadora desse processo. Vai ter que ter toda uma articulação com hospitais, com especialistas, como, por exemplo, para as cirurgias oftalmológicas. É o momento de sentar para conversar.
O que vem sendo planejado para isso?
Já conseguimos contratualizar com a [Maternidade] Cândido Mariano, para fazer as linhas materna e infantil, o [Hospital] São Julião, para fazer cirurgia geral, e o [Hospital do] Pênfigo, para fazer cirurgia ortopédica e geral.
A Santa Casa já recomeçou o atendimento de pacientes ortopédicos e ambulatorial de ortopedia. O Hospital Universitário vai abrir agenda para cirurgias e ambulatorial. E o [Hospital] Regional, onde se fazem as colonoscopias e cirurgias bariátricas. Então, aos poucos a gente vai retomando, de acordo com os indicadores da pandemia.
E quais seriam esses indicadores?
O nível de positividade dos testes. A cada 100 testes você tem o porcentual de positividade. Ele chegou a quase 60%, e hoje tem perto de 20%. Você tem aí um índice de positividade menor.
Quando você tem um número maior de buscas de pacientes, pacientes com sintomas procurando atendimento, e uma maior necessidade de internação e leitos. Quando isso aumenta, você já sabe que precisa se preocupar.
O que o senhor vê que será deixado como legado da pandemia em Campo Grande?
Assumi a Sesau [Secretaria Municipal de Saúde] em 1º de abril de 2019, à época, nós estávamos em plena epidemia de dengue, com nove mil casos sendo notificados por mês. A nossa preocupação principal era repor o quadro de funcionários. Nós tínhamos perdido mais de mil profissionais de saúde, principalmente médicos.
Tínhamos uma baixa cobertura na atenção primária, de 33%, com um terço das 90 equipes sem médicos.
Os contratos que tínhamos com as instituições eram casos em que o hospital fornecia o que ele queria, e não o que o município precisava. Depois, houve uma remodelação dos serviços contratualizados com a Santa Casa, a Maternidade Cândido Mariano, o Hospital do Câncer, o São Julião, o Universitário e o Regional.
Mudamos a parceria com as instituições baseados em um conceito simples: quem paga, manda. Então, acredito que esse foi um dos grandes enfrentamentos que agora nos permite a retomada das cirurgias eletivas e exames complementares, por exemplo.
Nós fizemos o maior concurso público em agosto de 2019, contratamos mais de 1,5 mil médicos de lá para cá, fizemos a residência médica de Saúde da Família e multidisciplinar, com seis profissões fazendo residência médica, todos com bolsas do Ministério da Educação [MEC], e hoje é a maior residência de Saúde da Família do País.
Isso aumentou a nossa cobertura de atenção primária de 33% para 75%, nós estávamos em 27º lugar e chegamos a 8º no ano passado. Resolvemos o [problema de] RH [Recursos Humanos], aumentamos a cobertura de atenção primária.
Agora, a pandemia foi uma situação surreal, nós empreendemos vários processos de trabalho relacionados a monitoramento, cadastro e teleatendimento.
No entanto, o mais importante de tudo isso, além da ampliação da estrutura e dos leitos de CTI, acredito que o principal foi a sociedade, que passou a valorizar o trabalhador da saúde. Acredito que, de tudo o que eu falei, as pessoas entendem que é melhor investir na saúde, nos profissionais.
Os shows foram parados, os jogos de futebol foram suspensos, todas as profissões que levam a nossa futura geração para o caminho tiveram que parar, e passamos a observar que é necessário que haja cada vez mais investimento em carreiras que sejam capazes de salvar vidas.
Isso fez com que o conhecimento e o respeito que a população tem com o trabalhador da saúde subisse para outro patamar. Isso é muito perceptível neste momento, durante a vacinação, certamente não faltou o sentimento de gratidão nos hospitais, nas UPAs, nos postos de saúde.
Todos os nossos esforços foram reconhecidos pela sociedade, e acredito que este é o maior legado da pandemia.
E sobre a estrutura trabalhada para enfrentar a pandemia, o que ela pode deixar de legado?
É muito importante a gente pensar nisso. Campo Grande contratualizou mais de 70 leitos em hospitais privados, de UTI e alguns leitos clínicos também.
Na relação público-privado, nós não fizemos, por exemplo, hospitais de campanha, porque logo percebemos que os pacientes precisavam de uma equipe multidisciplinar, precisavam, por exemplo, de um diagnóstico, de exames de laboratório, de especialistas e de vários procedimentos, pois eram pacientes [com casos] extremamente complexos.
Em vez de fazer um hospital, contratamos leitos ociosos dos melhores hospitais de Campo Grande. Todos esses hospitais passaram a receber pacientes do SUS, com tabela fixa e preço uniforme para todos, por meio de um chamamento público. Todos aderiram. Eles estavam com vagas sem ocupação na época e passaram a ofertar vagas.
E essa relação público-privado?
Essa relação público privado abre porta agora para o pós- pandemia, na questão dos exames e das cirurgias eletivas. Agora, esperamos que o Ministério da Saúde regulamente algumas situações que são necessárias para isso.
Por exemplo, o financiamento: “Olha, vou aportar tantos reais para que se façam aí os exames, as cirurgias eletivas, as consultas especializadas”. Acredito que ainda posso abrir um grande processo de contratualização para laboratórios de imagens, hospitais e procedimentos, para que a gente possa contratar pelo SUS. Essa relação eu digo que é o legado pós-pandemia.
O setor privado entendia que o SUS era o patinho feio e não queria conversa. De repente, foi ele que pagou o décimo terceiro e as férias dos funcionários dos hospitais privados. Ajudou a bancar o setor privado hospitalar. Então eles entenderam que o SUS não é tão patinho feio assim. Acho que dá para a gente evoluir com outros procedimentos.
Quais serão os outros avanços?
Então, nós estamos agora nesse momento de fazer essa relação de parceria avançar. Em vez de leitos, também partir para o processo de potencializar as cirurgias eletivas e os exames. Agora, eu dependo de recursos.
Os recursos este ano, por exemplo, na mesma época do ano passado eu tive aproximadamente 10% de recursos federais. Ou seja, em 2020 eu tive, por exemplo, R$ 50 milhões nessa época e nesse momento estou com só R$ 10 milhões, quase R$ 10 milhões. Então não é o mesmo potencial de investimento que tivemos no ano passado
Mas podem falar que isso é problema do município. Não, o problema é que a gente sabe que vamos ter que pagar essa conta. De onde vai sair esse dinheiro? Então, esse é o grande desafio, esse é o grande x da questão nesse momento.