O assunto da “adultização” de crianças e adolescentes nas redes sociais voltou a ser palco de discussões desde a última semana, quando o youtuber Felca publicou um vídeo denunciando a exploração de menores de idades na criação de conteúdo na internet.
O vídeo já ultrapassa 28 milhões de visualizações e ressalta o caso do influenciador digital Hytalo Santos, conhecido por vídeos ao lado de crianças e adolescentes dançando, falando sobre relacionamentos e se referindo a esses jovens como “filhos”.
Um dos casos em que Felca se aprofunda é o de Kamylla Santos, conhecida como Kamylinha, de 17 anos, que esteve no círculo desde os 12 anos. Hytalo seria o criador e publicador de cenas que expunham adolescentes com poucas vestes e com atitudes sugestivas em uma espécie de “reality show” em estilo “De Férias com o Ex”.
Em várias cenas, Kamylinha é exposta rebolando no colo de outro menor de idade, sendo filmada e aplaudida por adultos, com a justificativa da necessidade de produzir um “produto para o público”, incluindo show para adultos que incluíam danças sensuais em ambientes com consumo de drogas e álcool.
Aos 17 anos, a adolescente realizou um procedimento de implante de silicone nos seios, que foi exposto em um vídeo de pós-operatório.
As denúncias sobre o caso resultaram em uma investigação pelo Ministério Público do Trabalho da 13ª região e na instauração de um inquérito policial. Kamylinha teve suas redes sociais removidas pelo MP por decisão judicial e Hytalo Santos segue em investigação desde 2024.
O influencer possui mais de 20 milhões de seguidores e, na última sexta-feira (8), também perdeu o acesso à sua conta no Instagram.
De acordo com o Ministério Público da Paraíba, a investigação contra o influenciador apura uma possível exploração de menores e as autoridades avaliam se o conteúdo veiculado nas redes possui teor sexual, o que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Na época em que foi aberta a investigação, Hytalo se manifestou sobre o caso e disse que tudo é feito com consentimento das mães dos menores e que as duas principais adolescentes já são emancipadas.
Em MS
De acordo com a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), Mato Grosso do Sul tem registrado, ao longo dos anos, um aumento expressivo de casos de sexualização de crianças e adolescentes envolvendo o ambiente virtual.
“Embora a maioria dos registros envolva pessoas comuns, há um crescimento na quantidade de investigações relacionadas a influenciadores e criadores de conteúdo. Em alguns casos, a exposição excessiva ou inadequada de crianças em vídeos e transmissões ao vivo é feita para gerar engajamento e monetização, o que de certa forma caracteriza “adultização” e, em situações mais graves, configura crime”, explica a delegada titular da DEPCA, Anne Karine Sanches Trevizan Duarte.
Ao Correio do Estado, a delegada ressalta que o número exato de casos pode variar a cada ano, mas é nítido que a internet, especialmente as redes sociais e plataformas interativas que compreendem jogos virtuais, “têm sido utilizadas para o aliciamento, compartilhamento de imagens e indução à exposição sexual”.
Anne também explica que, independente do consentimento, qualquer material que contenha imagens de menores de 18 anos em situação sexual explícita ou com conotação sexual é considerado CSAM (em inglês, Child Sexual Abuse Material), “material de abuso sexual infantil”.
“O consentimento é juridicamente irrelevante, pois a lei entende que crianças e adolescentes não têm capacidade para consentir com práticas dessa natureza. Esses casos se enquadram nos artigos 240 e 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que tratam da produção, armazenamento e compartilhamento de material de abuso sexual infantil, com penas que podem chegar a até 8 anos de reclusão”.
Adultização
A delegada explica que a “adultização” de menores (que é quando há a exposição de crianças e adolescentes a padrões, comportamentos ou estéticas típicas do universo adulto) por si só, não configura CSAM.
Já o material de abuso sexual infantil, que é aquele que contém nudez explicita, ato sexual ou simulação de ato sexual com criança ou adolescente, com a clara intenção sexual, sim.
“A diferença está no conteúdo e no grau de exposição: a “adultização” pode ser um fator de risco, enquanto a produção, armazenamento e compartilhamento de material CSAM, já é crime consumado” explica e alerta:
“Importante destacar que a expressão “pornografia infantil”, tecnicamente, não mais é recomendada, apesar de ainda ser o nome usado comumente para se referir aos crimes previstos nos artigos 240 e 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para quem realiza diversos tipos de atos envolvendo imagens de abuso e exploração sexual infantil, pois o seu uso minimiza a gravidade desses crimes”.
Dados
Conforme o Ministério da Saúde, com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), foram registrados, de 2020 a 2024, 3.177 casos de violência sexual em Mato Grosso do Sul.
Desse total, 2.398 tiveram como vítimas pessoas de zero a 19 anos, o que corresponde a 75% do total das notificações. Ou seja, crianças e adolescentes representam três de cada quatro casos de violência sexual cometidos no estado. Das 2.398 vítimas crianças e adolescentes, 2.091 (87,2%) eram meninas.
Em 2025, já foram registradas 116 denúncias de violência contra criança ou adolescente no Estado, o que deixa o grupo com o maior número de denúncias entre os vulneráveis.
A violência sexual consiste na utilização dos menores para satisfação de desejos ou com a finalidade sexual por adultos, mesmo sem haver contato físico. Pode ser como abuso sexual ou como exploração sexual. Ambas as situações são configuradas como crime, com penas que podem chegar a 30 anos de prisão.
Diante disso, a delegada Anne reforça a importância do monitoramento dos pais e responsáveis às atividades praticadas pelos menores nas plataformas digitais.
“A Polícia Civil orienta que pais e responsáveis acompanhem ativamente a vida digital dos filhos, conheçam as plataformas que eles utilizam e estabeleçam limites claros para uso de redes sociais. É fundamental manter diálogo aberto sobre riscos, orientar sobre não compartilhar fotos íntimas ou com roupas inadequadas e configurar a privacidade das contas. Também recomendamos que os pais estejam atentos a mudanças de comportamento e denunciem imediatamente qualquer suspeita de aliciamento ou exposição indevida”.
“Quando falamos de sexualização e exploração de crianças e adolescentes, estamos tratando de crimes sérios, que causam danos profundos para a vítima. Aqui no Estado, já conseguimos identificar e responsabilizar pessoas, inclusive com grande visibilidade, que usaram crianças e adolescentes em conteúdo sexualizado”, ressalta e complementa reforçando que a prevenção ao crime começa em casa, através de orientação, diálogo e supervisão dos pais.
Todo cuidado é pouco
Para Anne, é fundamental ter cuidado com tudo o que é postado e divulgado na internet, seja pela criança ou pelos pais. A grande exposição, a qual todos estão sujeitos, deve ser monitorada e ser utilizada com “bom senso”.
“O que sempre reforçamos é que a internet não é um espaço “sem lei”. Tudo o que é feito ali deixa rastros e pode ter consequências graves. Quando essa exposição é feita de forma inadequada ou sexualizada, os riscos se multiplicam: não é só a segurança física que fica comprometida, mas também a reputação, a autoestima e até oportunidades futuras”, afirma.
“Proteger a identidade digital das crianças significa pensar antes de publicar, restringir acessos, evitar dados e imagens que possam ser mal utilizados, e ensinar desde cedo o uso consciente da internet. É como ensinar a atravessar a rua: pode parecer simples, mas é uma proteção vital para o resto da vida”, conclui.
Denuncie
O "Disque 100" é um serviço telefônico gratuito e anônimo do governo brasileiro para denúncias de violações de direitos humanos. Ele recebe, analisa e encaminha denúncias relacionadas a diversos grupos vulneráveis e temas, como crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+, entre outros.
Para fazer uma denúncia, basta ligar para o número 100 de qualquer telefone, fixo ou móvel, de qualquer lugar do Brasil, e a ligação é gratuita. O serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, incluindo sábados, domingos e feriados.



