Duas análises divulgadas internacionalmente na noite de quarta-feira (26) expõem os planos de marketing da filial japonesa da Philip Morris para expandir o mercado dos cigarros eletrônicos, ganhar apoio regulatório e social, além de financiar pesquisas científicas favoráveis ao produto.
Os dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como vape e pod, são permitidos em mais de 30 países, incluindo Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Austrália e Nova Zelândia. No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) manteve a proibição da venda desses produtos em abril deste ano.
O primeiro relatório, elaborado por um grupo global que monitora a indústria do tabaco (Stop), analisou um documento vazado da Philip Morris Japão (PMJ), datado de 2019, revelando as estratégias da empresa para influenciar políticos, profissionais de saúde, empresas e consumidores a aceitarem os dispositivos eletrônicos para fumar.
Segundo a análise, o documento revela o desejo da indústria de alcançar um público muito maior do que apenas os adultos fumantes, para os quais esses produtos foram inicialmente aprovados.
O segundo estudo é uma pesquisa acadêmica realizada pelo grupo de controle do tabagismo da Universidade de Bath, publicada na revista científica Nicotine and Tobacco Research, que revela que a PMJ financiou secretamente uma pesquisa conduzida por acadêmicos japoneses e contratou uma consultoria para promover estudos científicos favoráveis aos produtos de tabaco aquecido.
"A ciência tendenciosa e as mensagens científicas distorcem o ambiente de informação, tornando mais difícil para os decisores políticos e o público fazer escolhas informadas", disse Sophie Braznell, pesquisadora associada do departamento de saúde da Universidade de Bath e principal autora do estudo.
Ela ressaltou que esses trabalhos reforçam evidências anteriores que contradizem as afirmações da Philip Morris Internacional (PMI) de que a empresa e seus produtos podem reduzir o tabagismo e seus danos associados. "Consumidores, cientistas, jornalistas e decisores políticos devem ser extremamente céticos em relação à PMI, sua ciência e seus produtos 'de risco reduzido'", afirmou em comunicado.
Em resposta, a Philip Morris afirmou que desde a introdução dos produtos de tabaco aquecido, o Japão experimentou uma redução significativa nas taxas de tabagismo, de quase 20% dos adultos em 2014 para 13% em 2019. "O exemplo japonês demonstra que produtos sem fumaça são uma alternativa para adultos fumantes comparada à continuidade do tabagismo convencional."
A empresa destacou que, como qualquer multinacional altamente regulamentada, busca compartilhar posições sobre questões que afetam consumidores e comunidades. "Esse tipo de engajamento não é apenas legal e apropriado, mas essencial para um processo de formulação de políticas públicas inclusivo, levando a melhores resultados para as pessoas afetadas por essas políticas."
O relatório baseado no documento de marketing vazado sugere que a filial japonesa tinha planos de "expandir rapidamente" a adoção de dispositivos eletrônicos por novos usuários, inclusive comercializando para jovens e até crianças em idade escolar, conforme evidências anteriores.
Além disso, segundo o documento, a PMJ planejava fazer lobby para permitir o uso de vapes em locais onde fumar é atualmente proibido, mirando políticos, grupos médicos, a Agência Japonesa de Gestão de Incêndios e Desastres, e grupos de hotelaria. "Se bem-sucedidos, poderiam criar uma aceitação orgânica e generalizada dos produtos de tabaco aquecido", diz um trecho.
O documento também revelou planos da PMJ para promover os dispositivos eletrônicos durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, estratégia que, segundo o Stop, reflete uma tática conhecida da indústria de associar produtos de tabaco a eventos esportivos, "vinculando esses produtos à saúde, enganando consumidores e impactando crianças e jovens".
Um relatório da OMS (Organização Mundial de Saúde), divulgado em julho, descreveu o aumento do uso de álcool e cigarros eletrônicos entre jovens de 11 a 15 anos na Europa como "alarmante". Quase um quarto dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos experimentaram cigarro eletrônico em 2023, segundo dados da Vital Strategies e da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), um aumento de 20% em relação a 2022.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Jorge Alday, diretor da Stop, afirmou que o relatório deixa claro que a PMI, através de sua influência e marketing no Japão, criou um mercado significativo para um produto que é viciante e prejudicial à saúde.
Ele destacou que as crescentes evidências questionam a credibilidade das alegações da PMI de que suas ações visam apenas adultos fumantes. "As ações no Japão são, no mínimo, ética e eticamente questionáveis. Isso é preocupante, dado que a ciência da PMI já influenciou múltiplas decisões regulatórias sobre produtos de tabaco aquecido, impactando bilhões de pessoas", alertou.
Segundo Jorge Alday, há vários exemplos documentados de que a mesma estratégia tem sido adotada em outros países, incluindo contatos da indústria com ministros do governo e conselhos locais no Reino Unido, patrocínio de cursos de educação médica continuada nos EUA, planos de venda dos produtos em pubs, bares e clubes na Austrália, investimentos na indústria do turismo na Grécia e tentativas de recrutar dentistas como defensores dos produtos na Alemanha.
No Brasil, afirmou Alday, executivos da PMI se reuniram com parlamentares e funcionários ministeriais, assim como no Japão. Ele elogiou a decisão da Anvisa de manter a proibição dos cigarros eletrônicos no país.
"Não há evidências de que esses dispositivos ajudem na cessação, e estudos recentes mostram que a maioria das pessoas não para de fumar completamente. Na verdade, elas mais comumente usam cigarros e produtos de tabaco aquecido em conjunto."
Sobre a presença disseminada de dispositivos eletrônicos ilegais, Alday disse que muitos países enfrentam o mesmo problema e enfatizou que a solução não é tornar esses produtos mais acessíveis. "A resposta é abordar de maneira mais eficaz o comércio ilegal, responsabilizar a indústria e garantir que as regulamentações protejam os jovens."
O relatório ressalta que, embora os dispositivos eletrônicos para fumar exponham os usuários a níveis mais baixos de substâncias nocivas do que os cigarros tradicionais, não há evidências de que reduzam o risco de doenças e mortes relacionadas ao tabagismo em comparação com o consumo de cigarros.