Artigos e Opinião

EDITORIAL

As bolhas que nos afastam da realidade

Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis

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A expressão “estar em uma bolha” deixou de ser apenas uma gíria de internet para se transformar em um retrato cada vez mais fiel da forma como a sociedade vem se organizando. Nas redes sociais, algoritmos direcionam conteúdos, opiniões e notícias de acordo com preferências previamente identificadas.

O resultado é um ambiente confortável em que quase tudo confirma aquilo que o indivíduo já pensa. Divergir passa a ser exceção e confrontar ideias, um incômodo evitado.

Fora do ambiente digital, a lógica das bolhas também se impõe. O isolamento crescente em condomínios fechados, verticais ou horizontais, reduz o contato cotidiano com o diferente. Ao limitar o convívio, o indivíduo perde a oportunidade de compreender realidades distintas da sua própria.

Torna-se, ao mesmo tempo, mais desconfiado e mais desinformado, conhecendo o mundo mais pelo “ouvir dizer” do que pela experiência direta. A realidade passa a ser filtrada, editada e, muitas vezes, distorcida.

As bolhas criam falsas impressões. Quando se consolidam em grupos, reforçadas pelo sentimento de pertencimento, geram uma perigosa falta de sintonia com o restante da sociedade. Problemas coletivos passam a ser relativizados, minimizados ou simplesmente ignorados.

A empatia dá lugar à autoproteção e o interesse público acaba substituído pela preservação de privilégios.

Nesta edição, mostramos um exemplo concreto dessa desconexão: o aumento do duodécimo para quase todas as instituições de Mato Grosso do Sul, mesmo após um ano marcado por crise financeira, enquanto cresce a sobrecarga sobre o Poder Executivo.

É sobre ele que recai, de forma quase exclusiva, o peso de enfrentar as dores reais da sociedade: da falta de recursos para serviços essenciais às demandas crescentes por saúde, educação, transporte e assistência social.

Essa discrepância orçamentária não é apenas um dado técnico. Ela reforça as bolhas institucionais. Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis.

Trata-se de um desequilíbrio que aprofunda a sensação de injustiça e distancia ainda mais as instituições da realidade vivida pela população.

Seria desejável que integrantes das instituições que recebem repasses de duodécimo saíssem de suas bolhas. Que vivessem mais intensamente a realidade fora de gabinetes, relatórios e planilhas.

Que entendessem que, em tempos de dificuldades financeiras, reforçar privilégios e ampliar confortos institucionais não é apenas insensível, é socialmente injusto.

Romper bolhas não é simples, mas é necessário. Para indivíduos, para grupos e, sobretudo, para instituições públicas. A democracia e a justiça social exigem mais contato com a realidade concreta e menos acomodação em mundos protegidos. Caso contrário, seguiremos administrando percepções, e não problemas reais.

ARTIGOS

A Interpol e as lições do roubo ao Louvre: quando a cultura exige proteção global

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural

16/12/2025 07h45

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A Interpol é amplamente reconhecida por seus sistemas de avisos e pela atuação no combate ao crime organizado transnacional.

O recente episódio envolvendo o Louvre, porém, recoloca em evidência um ponto ainda subestimado no debate público: crimes não violentos, como o roubo de bens culturais, também demandam tutela internacional qualificada.

O tráfico de obras de arte e de patrimônio histórico segue sendo um delito de baixo risco e alto lucro, alimentado pela opacidade do mercado e pela fragmentação das respostas estatais.

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural. A Interpol parte dessa premissa, ao reconhecer a cultura como interesse jurídico protegido, merecedor da mesma atenção dedicada à vida, à segurança e à integridade física.

Nesse contexto, o Banco de Dados de Obras de Arte Roubadas da organização cumpre papel central: dar rastreabilidade a um mercado em que o patrimônio cultural pode, com facilidade, converter-se em saque.

A existência do banco de dados não é apenas simbólica. Ela permite a identificação de peças subtraídas, inibe a circulação ilícita e oferece suporte técnico às investigações nacionais.

Ainda assim, a eficácia do sistema depende de algo que nem sempre acompanha a velocidade do crime: cooperação internacional efetiva e compartilhamento ágil de informações entre agências de aplicação da lei.

Há espaço evidente para aprimoramentos. A ampliação do banco de dados com atualizações em tempo real, a integração mais ampla de museus, casas de leilão e colecionadores privados, além de protocolos obrigatórios de verificação de procedência, fortaleceriam significativamente o combate ao tráfico ilícito.

Do mesmo modo, penalidades mais rigorosas e treinamento especializado para forças policiais e autoridades alfandegárias são medidas indispensáveis para reduzir a atratividade econômica desse tipo de crime.

O episódio do Louvre serve como alerta. Proteger bens culturais não é capricho elitista nem pauta secundária: é defesa da memória, da identidade e do patrimônio comum da humanidade.

Quando uma obra é roubada, perde-se mais do que um objeto, perde-se um fragmento da história coletiva. A resposta, portanto, precisa ser global, coordenada e à altura desse valor.

ARTIGOS

Antissemitismo contemporâneo e violência simbólica

O atentado ocorrido em Sydney durante uma celebração de Hanukkah não pode ser lido apenas como um episódio de violência extrema circunscrito a um tempo e a um lugar específicos

16/12/2025 07h30

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Havia velas acesas. Não como metáfora literária, mas como gesto antigo: pequenas chamas dispostas contra a noite, insistindo em permanecer. O atentado ocorrido em Sydney durante uma celebração de Hanukkah não pode ser lido apenas como um episódio de violência extrema circunscrito a um tempo e a um lugar específicos.

Ele se apresenta como sinal perturbador da permanência histórica do antissemitismo enquanto estrutura simbólica ativa, capaz de atravessar séculos e adaptar-se continuamente às linguagens do presente.

Longe de constituir um desvio isolado, o ataque se insere em uma longa cadeia de acontecimentos que revela como o ódio ao judeu opera como lógica recorrente de exclusão. O antissemitismo não funciona como simples preconceito individual ou falha moral pontual.

Trata-se, antes, de uma racionalidade do ódio: um mecanismo coletivo que organiza frustrações sociais e crises identitárias por meio da eleição reiterada de um inimigo histórico. Hannah Arendt já advertia que o antissemitismo moderno não é um resíduo medieval, mas produto da fragilização das estruturas políticas e do espaço público.

A história judaica, marcada pela diáspora, pela perseguição e pela resistência, construiu-se sob o signo da memória. Não se trata de uma memória passiva ou meramente comemorativa, mas de uma memória ética.

Há aqueles que afirmam que os judeus têm o dever de continuar existindo enquanto judeus, para não conceder ao nazismo uma vitória simbólica póstuma. Cada ataque contemporâneo, portanto, não fere apenas indivíduos, mas tenta romper uma continuidade histórica sustentada pela transmissão cultural.

O fato de a violência ter ocorrido durante o Hanukkah – festa da luz e da resistência – intensifica a perversidade simbólica do atentado. Quando o sagrado se torna alvo, não se atinge apenas uma comunidade específica, mas a própria ideia de convivência plural.

Elie Wiesel lembrava que o maior risco moral das sociedades não é o ódio declarado, mas a indiferença que o normaliza.

No mundo contemporâneo, o antissemitismo frequentemente se mascara sob discursos políticos ambíguos, nos quais se confunde crítica legítima a decisões estatais com hostilidade dirigida a identidades coletivas.

Essa confusão cria terreno fértil para a estigmatização e para a legitimação simbólica da violência. A advertência de Primo Levi permanece atual: aquilo que aconteceu pode acontecer novamente.

Nesse contexto, a reflexão ética proposta por Martin Buber adquire especial relevância. Ao afirmar que toda vida verdadeira é encontro, o filósofo nos lembra que o antissemitismo nega radicalmente a relação, substituindo o rosto pelo estereótipo, o diálogo pela caricatura, o humano pela abstração.

Combater o antissemitismo não é tarefa restrita a políticas de segurança. Trata-se de um compromisso civilizatório que envolve educação histórica, responsabilidade institucional e vigilância ética permanente. Academias, universidades e veículos de pensamento atuam justamente no campo simbólico onde o ódio se forma ou é contido.

O atentado de Sydney interpela não apenas a comunidade judaica, mas toda a sociedade. Onde o antissemitismo encontra espaço, a dignidade humana se fragiliza. Defender a memória, recusar a indiferença e sustentar o pluralismo não são gestos retóricos.

São como aquelas velas iniciais: frágeis à primeira vista, mas suficientes para lembrar que a escuridão nunca é absoluta – apenas espera que alguém deixe de acender a luz.

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