Artigos e Opinião

ARTIGO

Clarisse Goldberg: "O uso da dor do outro"

Psicóloga, integrante da Coordenação do Observatório Judaico dos Direitos Humanos

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Na sala, vó Raquel escuta, entre suspiros, “Iídiche Mame” no toca-discos. Quando a música termina, olha para a neta e conta, mais uma vez, sua história – da fuga da Polônia entre as duas grandes guerras, da família e amigos que ficaram por lá e morreram nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazista, da chegada ao Brasil. Encerra a conversa pedindo que a neta, caso tenha uma filha, dê seu nome, para que ela nunca seja esquecida.

Não esquecer é uma lembrança que acompanha as vítimas de guerras, ditaduras, genocídios e imigrações forçadas, pelo mundo. No nosso caso, judias e judeus, o jamais esquecer é recordado ainda mais fortemente no Dia de Lembrança do Holocausto, mesma data em que se homenageia o Levante do Gueto de Varsóvia, e no 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (ou como chamamos, Shoah). Lembramos do crime contra a humanidade que levou ao extermínio de milhões de judeus, ciganos, homoafetivos, comunistas, opositores ao nazismo, negros, deficientes e outros “indesejáveis”. Foi nesse dia, em 1945, que as tropas soviéticas (integrantes dos países Aliados, origem das Nações Unidas), libertaram o maior campo de extermínio nazista, Auschwitz-Birkenau, na Polônia.

Lembrar para jamais esquecer. E a cada ano, perguntamo-nos:

- Quem irá nos lembrar desse horror, quando os sobreviventes não estiverem mais por aqui?

Trago em mim, neta da vó Raquel, uma resposta: nós, descendentes de imigrantes e sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Nós somos herdeiros dessa história, trazemos impregnado em nossos genes os horrores que nossos antepassados viveram, os medos, as despedidas, as saudades. No meu caso, também pesadelos com campos de concentração.

Apesar disso, passados 74 anos do final da guerra, muitos desconhecem o que foi o Holocausto, tornando a lembrança ainda mais necessária, especialmente no momento em que se ignora a história e o conhecimento em nome de uma guerra ideológica e do ataque a quem é “indesejável” ao governo. O desconhecimento é preenchido com falsas informações e polêmicas. Nesse contexto de vale tudo, mais que esquecida, a Shoah vem sendo desrespeitada e ultrajada, assim como a história de dezenas de milhões de vítimas do nazismo, entre elas seis milhões de judeus. Tentar reescrever a história, inventando um “nazismo de esquerda” como inimigo a ser odiado – como os judeus para os nazistas -, perdoar uma dor que não lhe pertence e que não tem como ser perdoada, divulgar a homenagem a um soldado alemão que serviu ao exército nazista, apresentando-o como “sobrevivente” de guerra. Um insulto à memória das vítimas e dos verdadeiros sobreviventes!

Mas nós, que trazemos essas lembranças para que jamais esqueçamos a que ponto a humanidade pode chegar, também herdamos a esperança de que esses crimes não se repitam, seja com que população for. Por isso, é imperdoável que se deturpe, banalize ou minimize um dos maiores crimes da história em nome de um projeto de poder. E mesmo que tentem contar a história de outra maneira, não muda como ela aconteceu.

Não deveria ser humano apoiar ou desejar extermínio, mais desumano ainda é planejar para que horrores desse tipo aconteçam. Por isso, precisamos lembrar para jamais esquecer. Honrar e respeitar as vítimas, os sobreviventes, aprender com a história e, acima de tudo, estarmos alertas para que não se repita.

EDITORIAL

As bolhas que nos afastam da realidade

Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis

17/12/2025 07h15

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A expressão “estar em uma bolha” deixou de ser apenas uma gíria de internet para se transformar em um retrato cada vez mais fiel da forma como a sociedade vem se organizando. Nas redes sociais, algoritmos direcionam conteúdos, opiniões e notícias de acordo com preferências previamente identificadas.

O resultado é um ambiente confortável em que quase tudo confirma aquilo que o indivíduo já pensa. Divergir passa a ser exceção e confrontar ideias, um incômodo evitado.

Fora do ambiente digital, a lógica das bolhas também se impõe. O isolamento crescente em condomínios fechados, verticais ou horizontais, reduz o contato cotidiano com o diferente. Ao limitar o convívio, o indivíduo perde a oportunidade de compreender realidades distintas da sua própria.

Torna-se, ao mesmo tempo, mais desconfiado e mais desinformado, conhecendo o mundo mais pelo “ouvir dizer” do que pela experiência direta. A realidade passa a ser filtrada, editada e, muitas vezes, distorcida.

As bolhas criam falsas impressões. Quando se consolidam em grupos, reforçadas pelo sentimento de pertencimento, geram uma perigosa falta de sintonia com o restante da sociedade. Problemas coletivos passam a ser relativizados, minimizados ou simplesmente ignorados.

A empatia dá lugar à autoproteção e o interesse público acaba substituído pela preservação de privilégios.

Nesta edição, mostramos um exemplo concreto dessa desconexão: o aumento do duodécimo para quase todas as instituições de Mato Grosso do Sul, mesmo após um ano marcado por crise financeira, enquanto cresce a sobrecarga sobre o Poder Executivo.

É sobre ele que recai, de forma quase exclusiva, o peso de enfrentar as dores reais da sociedade: da falta de recursos para serviços essenciais às demandas crescentes por saúde, educação, transporte e assistência social.

Essa discrepância orçamentária não é apenas um dado técnico. Ela reforça as bolhas institucionais. Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis.

Trata-se de um desequilíbrio que aprofunda a sensação de injustiça e distancia ainda mais as instituições da realidade vivida pela população.

Seria desejável que integrantes das instituições que recebem repasses de duodécimo saíssem de suas bolhas. Que vivessem mais intensamente a realidade fora de gabinetes, relatórios e planilhas.

Que entendessem que, em tempos de dificuldades financeiras, reforçar privilégios e ampliar confortos institucionais não é apenas insensível, é socialmente injusto.

Romper bolhas não é simples, mas é necessário. Para indivíduos, para grupos e, sobretudo, para instituições públicas. A democracia e a justiça social exigem mais contato com a realidade concreta e menos acomodação em mundos protegidos. Caso contrário, seguiremos administrando percepções, e não problemas reais.

ARTIGOS

A Interpol e as lições do roubo ao Louvre: quando a cultura exige proteção global

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural

16/12/2025 07h45

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A Interpol é amplamente reconhecida por seus sistemas de avisos e pela atuação no combate ao crime organizado transnacional.

O recente episódio envolvendo o Louvre, porém, recoloca em evidência um ponto ainda subestimado no debate público: crimes não violentos, como o roubo de bens culturais, também demandam tutela internacional qualificada.

O tráfico de obras de arte e de patrimônio histórico segue sendo um delito de baixo risco e alto lucro, alimentado pela opacidade do mercado e pela fragmentação das respostas estatais.

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural. A Interpol parte dessa premissa, ao reconhecer a cultura como interesse jurídico protegido, merecedor da mesma atenção dedicada à vida, à segurança e à integridade física.

Nesse contexto, o Banco de Dados de Obras de Arte Roubadas da organização cumpre papel central: dar rastreabilidade a um mercado em que o patrimônio cultural pode, com facilidade, converter-se em saque.

A existência do banco de dados não é apenas simbólica. Ela permite a identificação de peças subtraídas, inibe a circulação ilícita e oferece suporte técnico às investigações nacionais.

Ainda assim, a eficácia do sistema depende de algo que nem sempre acompanha a velocidade do crime: cooperação internacional efetiva e compartilhamento ágil de informações entre agências de aplicação da lei.

Há espaço evidente para aprimoramentos. A ampliação do banco de dados com atualizações em tempo real, a integração mais ampla de museus, casas de leilão e colecionadores privados, além de protocolos obrigatórios de verificação de procedência, fortaleceriam significativamente o combate ao tráfico ilícito.

Do mesmo modo, penalidades mais rigorosas e treinamento especializado para forças policiais e autoridades alfandegárias são medidas indispensáveis para reduzir a atratividade econômica desse tipo de crime.

O episódio do Louvre serve como alerta. Proteger bens culturais não é capricho elitista nem pauta secundária: é defesa da memória, da identidade e do patrimônio comum da humanidade.

Quando uma obra é roubada, perde-se mais do que um objeto, perde-se um fragmento da história coletiva. A resposta, portanto, precisa ser global, coordenada e à altura desse valor.

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