Sancionada ano passado, a alteração da Lei de Execução Penal está gerando um debate acerca do nível dos serviços médicos em complexos prisionais, principalmente quando uma das medidas é a quantidade de detentos por médico, que em Mato Grosso do Sul é de 298 por profissional, o que escancara a precariedade no atendimento físico, mental e psicológico aos internos.
Para contextualizar, a Lei nº 14.843 prevê a realização de exame criminológico para progressão de regime, ou seja, uma perícia, na qual se realiza o diagnóstico da conduta criminosa. Como mencionado, esta determinação agora está presente na Lei de Execução Penal, criada em 1984, que trata sobre o direito do reeducando nas penitenciárias do Brasil, e a sua reintegração na sociedade.
Até 2003, o exame criminológico estava presente, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) o derrubou, depois de diversos relatos dos próprios presos que disseram que o Estado não oferecia estrutura adequada para realização do teste.
Com isso, passou a valer apenas o tempo de prisão e comportamento do preso durante o cumprimento da pena. Porém, a obrigatoriedade do exame retornou no ano passado, com a mudança na legislação.
“Por meio do exame criminológico, uma equipe designada para essa finalidade busca analisar o preso em suas várias dimensões – pessoal, familiar, orgânica e psicológica, entre outras –, traçando um perfil do examinado e dando indicações sobre seu comportamento e as possibilidades de recuperação ou de cometimento de novos delitos. A equipe de avaliação é composta normalmente por profissionais como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais”, explica o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Segundo os dados de junho deste ano da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen), há 22.360 internos em complexos prisionais sul-mato-grossenses, incluindo aqueles em monitoramento virtual.
Já de acordo com relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do segundo semestre de 2024, há 27 psicólogos, 8 psiquiatras e 40 assistentes sociais atuando em prisões no Estado. Ou seja, são 298 detentos para cada profissional de saúde.
Ainda segundo o relatório da pasta, no segundo semestre do ano passado, 34 internos morreram durante o cumprimento da pena em Mato Grosso do Sul, dos quais 26 foram por motivos de saúde, e o restante por fatos criminais dentro da cadeia.
Acerca dos presos com agravo de doenças transmissíveis, Mato Grosso do Sul registrou 744 com diagnóstico de HIV (Aids), sífilis, hepatite, tuberculose e hanseníase.
Em contato com o Correio do Estado, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul afirmou que recebe demandas relacionadas a atendimentos de saúde para as pessoas que estão nas unidades do sistema penitenciário de forma recorrente.
Porém, recentemente, não foi preciso ajuizar ação referente ao tema, de acordo com Maurício Augusto Barbosa, coordenador do Núcleo Institucional do Sistema Penitenciário (Nuspen).
“A Defensoria toma ciência disso e entra em contato com a direção do respectivo estabelecimento para administrativamente solicitar que o custodiado ou a custodiada receba com agilidade o atendimento de saúde que necessita ou determinado medicamento, se for o caso”, explica em nota à reportagem.

AQUÉM
Formado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o infectologista Julio Croda, que participa de projeto para conter a tuberculose dentro das penitenciárias do Estado, afirmou que a saúde prisional deixa a desejar, mesmo com a Política Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (Pnaisp), criada em 2014. Ele afirma que existe um deficit da implantação da política pública.
“O SUS se iniciou em 1988 e a gente só teve uma política de saúde prisional em 2014. E essa saúde prisional antes era toda administrada e suportada pelo Estado, principalmente pela Secretaria de Justiça e não de Saúde. Portanto, só a partir de 2014, a gente tem um direcionamento claro de que a população privada de liberdade também faz parte do SUS”, disse o profissional.
Como citado anteriormente, as doenças transmissíveis são recorrentes nos complexos prisionais sul-mato-grossenses. Acerca disso, Julio Croda explica o motivo pelo qual essas doenças se dissipam com facilidade nas prisões.
“As condições de encarceramento são muito favoráveis à transmissão da tuberculose, que é a doença que é transmitida por via respiratória. As condições dos presídios do Brasil e aqui de Mato Grosso do Sul não são diferentes. Quando você tem uma superlotação, você favorece a transmissão da doença nesses ambientes que são pouco iluminados, com falta de ventilação adequada”, reforça.
Sobre a superlotação, segundo dados da própria Agepen, em Mato Grosso do Sul, existem 9.570 vagas, porém, são 17.486 detentos encarcerados, além de mais 4,8 mil que usam tornozeleira eletrônica, o que mostra que o Estado tem o dobro de detentos do que comporta.
O infectologista tem um projeto, desde 2017, que atua nas duas maiores penitenciárias de Campo Grande, com foco em identificar estratégias mais adequadas de controle de tuberculose dentro das prisões, com o oferecimento de radiografia de tórax, exame do teste do escarro e, além dos pacientes que são diagnosticados, é oferecido o tratamento médico completo com equipe multiprofissional.
Outro aspecto importante que o infectologista destaca é a falta de interesse de profissionais da saúde para trabalharem dentro da cadeia, justamente pelo risco que a atividade apresenta, e ganhar um salário igual ou semelhante ao que ganharia exercendo a profissão dentro de hospitais comuns.
“Os profissionais que entram para trabalhar com essa população rapidamente querem ser transferidos para outros setores mais administrativos ou para outros serviços de saúde não relacionados à saúde prisional. Então, também existe essa essa dificuldade de manter profissionais bem treinados no sistema prisional”, explica.
Para concluir, Julio diz que a negligência na saúde prisional não é uma exclusividade de Mato Grosso do Sul, mas sim do Brasil inteiro.
“Assistência à saúde para essa população é menos adequada, essa população tem menos acesso a exames, a diagnóstico e a tratamento, do que a população geral”, conclui o infectologista.
SAIBA
Sob relatoria do ministro André Mendonça, está em análise no Supremo Tribunal Federal (STF) um Recurso Extraordinário que avalia se a exigência de exame criminológico para progressão de regime também vai valer para crimes anteriores a quando a Lei n° 14.843 foi sancionada.




