Poeta, declamador, ator, mestre de cerimônias e palestrante, Ruberval Cunha completa 35 anos de carreira e anuncia livro para 2025; criador do improviso guaicuru, o artista campo-grandense impressiona pela capacidade de fazer rimas com profundidade
Ariano Suassuna (1927-2014), Adélia Prado, Affonso Romano de Sant’Anna, Thiago de Mello (1926-2022) e Manoel de Barros (1916-2014) estão entre os grandes nomes da literatura brasileira que já se impressionaram com a verve lírica de Ruberval Cunha. A lista é longa e pra lá de célebre, incluindo Arnaldo Antunes, Fabrício Carpinejar, Gabriel O Pensador, Waly Salomão (1943-2003) e diversos outros. Mas o público que se encanta com a arte desse campo-grandense que completou 35 anos de carreira em 2024 é bem mais vasto e vai além da fronteira de Mato Grosso do Sul.
Sem exagero, todos parecem se encantar com o seu talento para dizer versos criados sempre de improviso, no calor do momento, sobre qualquer tema, muitas vezes a partir de palavras escolhidas pela própria plateia. Poeta, declamador, ator, mestre de cerimônias e palestrante, Ruberval é o criador do chamado improviso guaicuru. Com sua vestimenta de pantaneiro, chapéu na cabeça, berrante em punho e maquiagem no rosto, é o próprio poeta quem mais parece se emocionar com aquilo que diz.
Seu carisma e talento são penetrantes. Bonito de se ver seus olhos de criança quase sempre marejando aos fazer rimas imediatas sobre qualquer tema com profundidade e lirismo. Foi assim, por exemplo, no Festival da Juventude, realizado em abril de 2024, na Capital, e na Feira Literária de Bonito, em julho daquele mesmo ano, onde a presença febril e cativante do artista, circulando pela Praça da Liberdade, fazia cada encontro soar como um momento mágico.
Ruberval se aproximava de pequenos grupos, de duas ou três pessoas, ou até mesmo de alguém sozinho e entabulava um papo. Nem sempre começava já declamando – perguntava algo, queria saber da vida de seu interlocutor. Casais, crianças, idosos. Mirando no semblante de todos, um a um, ele seguia fazendo o que mais sabe na vida: entreter com poesia.
É um menestrel que agrada e arrebata sem demora, do riso à lágrima com igual intensidade, de modo que vê-lo de longe brilhando com o seu improviso é também um espetáculo à parte.
GRILOS E VIOLINOS
A história desse artista único tem mais graça na sua própria prosa, forjada desde menino, com vulto especial nas muitas férias que passou no Pantanal.
Na época a luz de lamparina era comum, pois fazendas não tinham energia elétrica. “Nessa época, o Pantanal tinha fases bem definidas, e na fase da cheia a água chegava bem perto da sede, permitindo vislumbrar da janela da sala centenas de aves e um pôr do sol deslumbrante”, recorda-se.
“Minha tia era multi-instrumentista e tinha um baú de instrumentos na sede, embora o seu favorito fosse o violino. Não raro, quando criança, dormi ao som de grilos e violinos. A vivência rural inspirou muitos poemas com temática de natureza e do Pantanal”, conta o artista, o qual, em paralelo à carreira com os versos, acumula 26 anos de trabalho como servidor público. Quando atuou na Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim, esteve à frente de projetos como Todas as Letras, Vem Ler o Mundo e Vestibuler.
Também atuou no Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul (Detran-MS) – onde foi um dos criadores do grupo Teatran –, ministrou oficinas literárias pela Prefeitura de Campo Grande e presidiu a União Brasileira de Escritores de Mato Grosso do Sul (UBE-MS).
“Meu primeiro concurso ganhei na Escola [Estadual] Maria Constança [Barros Machado], e considero esse o meu início de carreira, embora eu rabisque meus versos desde criança. Esse período [1989] coincide com o nascimento da extinta Associação de Novos Escritores, então presidida pelo professor Reginaldo Araújo, onde iniciei a minha trajetória cultural como poeta e declamador”, diz Ruberval.
“PALAVRAS ME REINVENTAM”
Formado em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o artista se descobriu improvisador a partir de um desafio.
“Quando Rachid Salomão lançou o opúsculo [livreto] ‘Da Lama para a Glória’, alguém me confundiu e afirmou para ele que eu era repentista. Rachid me convidou para um evento escolar, e eu insistia que não era repentista, porém, aceitei o convite para um desafio com 30 alunos. Cheguei na escola e a coordenadora perguntou se era eu o desafiante do Repentista do Oeste”, narra o poeta.
“Afirmei que sim duas vezes já perguntando pela sala de aula. Rachid chegou, e ela [coordenadora] nos levou ao fundo da escola, onde tinha entre 600 e 800 pessoas. Sem nunca ter feito isso, fiquei me desafiando com ele por cerca de 45 minutos. Posso dizer que o improviso me descobriu e que a incompetência
de não saber tocar e cantar me levou a criar um tipo diferente de repente: o improviso guaicuru, nome dado posteriormente pelo amigo e acadêmico Rubenio Marcelo”, conta.
“As palavras do público e o tema do evento costumam ser o norte para o improviso. As palavras me reinventam sendo costuradas sem normalmente possuírem um fecho prévio. Tudo ao redor, incluindo as emoções, as pessoas, as palavras ou os acontecimentos, é motivo de inspiração e poesia”, frisa ele, que ainda cita Manoel de Barros, Castro Alves (1847-1871) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) como suas principais referências na escrita poética.
“Em termos de improviso, criei uma modalidade nova, mas que não existiria sem o Rachid Salomão. Como contador de histórias, as referências principais são Francisco Gregório e o Grupo Gwaya”, enumera.
“O figurino, a maquiagem, o berrante e os acessórios surgiram em virtude da minha incompetência em tocar instrumentos e cantar seguindo o estilo gauchesco ou nordestino. Assim, usei elementos teatrais e da tradição local com os quais eu tinha contato e com condições de fazer uso. O discurso poético, o figurino e os demais elementos fundidos acabaram se tornando a identidade do trabalho”, diz Ruberval.
CULTURA PANTANEIRA
“Acredito que o mais difícil não seja improvisar sobre um tema, e sim manter um grau de qualidade no trabalho de maneira a alcançar um equilíbrio entre a técnica e o encantamento. Acredito que a junção de temas muitos técnicos com públicos de faixa etária muito variada é o que impõe maior dificuldade”, avalia o poeta, antes de passar em revista a cultura pantaneira que lhe deu régua e compasso.
“A cultura pantaneira, assim nominada, ganhou novas facetas e tem ampliado seus horizontes. A cultura pantaneira raiz, do meu ponto de vista e fazendo um recorte do tempo presente, tem um espaço menor na música, com representantes já consolidados. Todavia, tem ampliado espaço na culinária e na escrita tradicional, especialmente por meio de livros históricos. Acredito que filmes e romances de maior fôlego ainda devam surgir no cenário. A reedição da novela ‘Pantanal’ em um passado recente impulsionou a venda de berrantes e obras de autores regionais, em especial a de Manoel de Barros”, afirma.
LIVRO
Ruberval encerra a conversa fazendo uma retrospectiva pessoal de 2024 e projetando a publicação de um livro para 2025. “[O ano de] 2024 foi marcante para mim, em especial pelos 35 anos de carreira. Foram apresentações na UFMS, na UEMS [Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul] , eventos dentro e fora do Estado e reconhecimento da Assembleia Legislativa com a Comenda de Mérito Legislativo, [além do] título de cidadão [honorário] em Corguinho”, conta.
“Porém, faltou o lançamento do livro em que as pessoas que me auxiliaram durante a jornada receberiam uma homenagem. Ele vem no ano que vem [2025] se Deus assim permitir, [com o título de] ‘Poemas (A)Guardados e Outros Nascimentos’. Tenho outros projetos além dessa publicação”, promete o craque da oratória. Aguardemos.
Revelações Autorais
(...)
Acordei outros pertencimentos.
Infinito é estrada no horizonte.
O tempo deu corda nos olhos.
Pedaços de um título
experimentam esquecimentos.
Nobreza maior
é quando o escritor
tem moradia nas palavras.
Ruberval Cunha
(Trecho de poema inédito)
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