Há filmes que parecem nascer prontos para se tornarem relevantes, ainda mais em um tempo em que a vulnerabilidade social e o vazio de pertencimento se transformam em matéria-prima para grupos que se apresentam como “famílias escolhidas” ou “caminhos espirituais”. A Seita (A Sacrifice, título internacional), dirigido por Jordan Scott (filha de Ridley Scott), é um desses projetos que, em tese, carregavam uma atualidade perturbadora.
Um psicólogo americano, interpretado por Eric Bana, viaja para Berlim para investigar o suicídio coletivo de um culto, enquanto sua filha adolescente (Sadie Sink, de Stranger Things) acaba atraída por um grupo que mistura ideologia ambientalista com os contornos mais sombrios de uma comunidade pseudo-religiosa.
No papel, parecia uma trama irresistível: um suspense psicológico capaz de refletir sobre os mecanismos de manipulação de seitas, o poder de sedução de seus líderes e a fragilidade de quem busca pertencimento em tempos de incerteza. Mas, na prática, o filme perde a chance de ser contundente. O que poderia ter sido uma análise social e cultural se dilui em um thriller que aposta mais em atmosferas tensas do que em perguntas incômodas.
A trama: entre a investigação e a sedução
Ben Monroe (Bana) é um acadêmico respeitado, mas atravessa uma fase pessoal turbulenta. Ao lado da filha Mazzy (Sink), tenta reconstruir a vida na Alemanha, quando se vê diante de um caso de suicídio coletivo ligado a uma seita local. A investigação acadêmica — que já traz ecos de documentários sobre cultos reais — ganha contornos íntimos quando Mazzy se envolve com Martin, um jovem carismático que a introduz a um grupo aparentemente engajado em causas ambientais. A líder, Hilma, oferece a Mazzy um colar em uma cerimônia que parece ritualística e, ali, a linha entre ativismo e culto se dissolve.
O filme funciona melhor nesses momentos sutis, em que a sedução é feita pela promessa de sentido, de comunidade e de acolhimento. Sadie Sink traduz com habilidade a vulnerabilidade de uma jovem deslocada, e sua interpretação dá peso a uma personagem que poderia ter sido apenas o estereótipo da “filha rebelde”.
Um tema atual, mas pouco explorado
O grande problema de A Seita está justamente no que ele não ousa fazer. Ao contrário de obras como Midsommar ou mesmo documentários sobre seitas reais (Wild Wild Country, The Vow), aqui não há uma tentativa clara de desvendar como esses grupos constroem sua retórica, como adaptam causas legítimas — ambientais, espirituais ou políticas — em plataformas de manipulação psicológica.
Há acenos interessantes, como a crítica velada ao alarmismo ambiental usado como ferramenta de poder, mas o roteiro prefere contornar a discussão em vez de mergulhar nela. Essa ausência de substância também fragiliza a representação do culto: não há uma ideologia nítida, tampouco um objetivo convincente. Isso transforma os antagonistas em figuras esvaziadas, quando poderiam ter sido catalisadores de reflexões urgentes sobre fé, pertencimento e fragilidade contemporânea.
Ecos de seitas reais: um espelho da realidade
O que mais frustra em A Seita é perceber como a história tinha material para dialogar diretamente com episódios que marcaram a memória coletiva. O suicídio coletivo que abre a narrativa remete inevitavelmente a Jonestown, em 1978, quando mais de 900 seguidores do reverendo Jim Jones morreram em um ritual de envenenamento em massa. Ali, como no filme, o culto nasceu de discursos de justiça social, mas rapidamente se tornou uma prisão psicológica, sustentada pela paranoia e pela submissão absoluta ao líder.
Outro paralelo inevitável é com o Heaven’s Gate, nos anos 1990, em que dezenas de pessoas foram convencidas a abandonar seus bens e vidas terrenas na crença de que seriam levadas por uma nave espacial. A lógica de criar um “nós contra o mundo” e a ideia de oferecer salvação única ecoam no grupo retratado por Jordan Scott, ainda que de forma difusa.
Mais recentemente, escândalos como o da organização NXIVM expuseram a face moderna desses mecanismos: o uso de linguagem motivacional e terapêutica para encobrir abusos, manipulação e a exploração emocional e sexual de membros. O filme até tangencia esse universo ao mostrar como ideologias ambientalistas são deturpadas, mas não se compromete em estabelecer o retrato preciso de como vulnerabilidades individuais são transformadas em ferramentas de controle coletivo. Ao não se aprofundar nesses paralelos, A Seita perde a chance de provocar o espectador e de se posicionar como um filme que conversa com o nosso tempo.
Cinema B+: A Seita: quando um tema urgente se perde no meio do suspense - DivulgaçãoO peso das atuações
Eric Bana entrega uma performance correta, mas é Sadie Sink quem realmente ilumina o filme. Conhecida como Max em Stranger Things, aqui ela abandona qualquer ar de heroína e se entrega a uma personagem perdida, dividida entre o desejo de se libertar da autoridade paterna e a necessidade de encontrar um lugar para chamar de seu. É uma atuação contida, mas expressiva — os olhares silenciosos de Mazzy dizem mais sobre solidão e busca do que muitas falas do roteiro.
Ainda assim, nem mesmo o talento dos atores consegue preencher as lacunas do texto. Há momentos em que o filme parece hesitar: não sabe se deseja ser um comentário sociopolítico, uma parábola sobre ideologias modernas ou apenas um suspense eficiente.
A recepção e o debate
A crítica internacional refletiu essa sensação de frustração. No Rotten Tomatoes, o filme amarga 25% de aprovação, com média de 4,6/10, enquanto no Metacritic a pontuação é de 44, traduzida como “mediana”. No Reddit, espectadores apontaram a falta de carisma dos líderes do culto, diálogos pouco naturais e a ausência de uma lógica clara por trás das ações do grupo. Em outras palavras: faltou densidade onde mais importava.
Por outro lado, alguns elogios se concentraram na atmosfera criada pelo filme — uma Berlim fria e distante, que reforça o isolamento emocional das personagens, e na coragem de Jordan Scott (filha de Ridley Scott) em escolher um tema tão delicado.
O filme que poderia ter sido
A Seita é um filme que, no fim das contas, desperta mais reflexões pelo que deixa de mostrar do que pelo que entrega. Ele confirma como o tema das seitas continua atual — basta olhar para os noticiários, ou para os casos de manipulação em comunidades religiosas, espirituais e políticas —, mas se contenta em tratá-lo como pano de fundo para um suspense irregular.
Fica a sensação de que havia ali um potencial enorme: explorar o magnetismo de líderes, a retórica que mistura ideologia e emoção, o modo como jovens são cooptados em busca de sentido. Em vez disso, o que recebemos foi um filme com bons atores, uma atmosfera inquietante, mas pouca coragem de ir além.
Para quem gosta do gênero, há momentos de tensão bem construídos e uma Sadie Sink em plena ascensão. Mas, para quem esperava um retrato mais profundo de como as seitas funcionam e por que continuam a florescer, A Seita é, acima de tudo, uma oportunidade perdida.


