No embalo da programação dedicada à Semana de Arte Moderna de 1922, o Sesc Cultura programou sessões gratuitas de um dos maiores clássicos do cinema, que, entre outros atributos, é considerado o marco zero dos filmes de terror.
“Nosferatu”, dirigido pelo alemão Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), ocupa a tela do espaço cultural, na Avenida Afonso Pena, nº 2.270, em três sessões gratuitas do Cine Sesc durante esta semana – hoje, às 19h, e na quinta-feira, às 15h e às 19h.
A projeção do filme no contexto do evento que retoma o modernismo no Brasil e a contribuição de seus expoentes – Oswald e Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Villa-Lobos, Menotti Del Picchia, etc – é apenas mais um motivo para não perder a oportunidade de conhecer, ou rever, essa pérola do cinema de horror, que praticamente fundou o gênero e destaca-se como um dos pontos altos do expressionismo alemão dos anos 1920.
Seu diretor é um cineasta emblemático, detentor de uma obra – “A Última Gargalhada” (1924), “Tartufo” (1925), “Fausto” (1926), “Aurora” (1927) – de prestígio crescente ao longo do tempo.
DRÁCULA OU ORLOK?
No enredo, temos a conhecida história do Conde Drácula e sua louca obsessão por sangue puro e fresco.
Murnau, porém, para escapar do pagamento dos direitos autorais aos herdeiros de Bram Stoker (1847-1912), criador do romance original, publicado em 1897 na Inglaterra, altera o final, o nome dos personagens e outros detalhes da trama.
“Nosferatu”, cujo nome em alemão (“Nosferatu – Eine Symphonie des Grauens”) recebe o subtítulo “Uma Sinfonia do Horror”, passa então a ser o relato audiovisual centrado na figura do Conde Orlok.
Interpretado por Max Schreck (1879-1936), o soturno personagem incumbe um corretor de imóveis, Knock (Alexander Granach), de cuidar da compra de uma propriedade em Wisborg, na Alemanha.
Orlok vive isolado nos Montes Cárpatos, leste europeu, e Knock envia à região Thomas Hutter (Gustav von Wangenheim), seu funcionário de confiança, para assessorar o conde. O restante da história, todo mundo já sabe.
Após salivar pelo sangue de Hutter, que havia cortado o dedo durante o jantar na noite de chegada, o nobre misterioso e cadavérico bate os olhos em uma foto de Ellen, a amada do preposto, e suspira em voz alta: “Que pescoço adorável tem a sua esposa!”.
Orlok deixa Hutter confinado em seu castelo e parte em busca do pescoço desejado. Somente assim, sorvendo o sangue de Ellen, estará livre da maldição.
O que era medo há 100 anos, provoca hoje em dia muito mais risos e nostalgia do que calafrios.
As expressões de transtorno, medo e desvario de Greta Schröder, que vive a moçoila Ellen, são o principal indicativo do pavor causado pela criatura das trevas ao longo da trama, embora a ameaça de uma epidemia (a “peste”) e a morte de toda a tripulação de um navio ajudem a posicionar a trama em um universo de tensão e tragédia iminente ao longo de pouco mais de 90 minutos.
EXPRESSIONISMO
Os cenários deformados, a fotografia de contraste, explorando ao máximo o jogo de luz e sombra, os olhos arregalados, o gestual exagerado nas atuações e toda a atmosfera de medo e aniquilamento fizeram da representação posta em prática no conjunto dos filmes expressionistas uma metáfora.
E tanto da realidade alemã naquele período, marcado pela ressaca social e econômica em decorrência da derrota do país na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pelas sementes da ideologia ultraconservadora que frutificaria na ascensão do nazismo.
Além de “Nosferatu”, “O Gabinete do Doutor Caligari” (1919), de Robert Wiene, “O Golem” (1920), de Paul Wegner, “O Gabinete das Figuras de Cera” (1924), de Paul Leni, e as obras de Fritz Lang (1890-1976) – “Dr. Mabuse” (1922), “Metrópolis” (1927) e “M – O Vampiro de Dusseldorf” (1931) – estão entre as produções que definem o cinema expressionista.
Inicialmente, o termo expressionismo designou o trabalho de pintores que se ocuparam de uma criação que buscava relativizar a representação figurativa, submetendo-a a distorções na forma e a um intenso laboratório na paleta cromática a partir de um sentido orientado pela emoção.
Ao desdobrar-se para outras linguagens, como o teatro, a literatura e a música, o conceito foi se ampliando e se transformando, sem perder a prerrogativa da emoção, especialmente quando pautada por pulsões de morte, sofrimento e derrotismo.
No cinema, além das características elencadas, o expressionismo apoia-se na literatura fantástica – Bram Stoker, Edgard Allan Poe (1809-1949), Thea von Harbou (1888-1954) – e em uma teatralidade e grafismo de mise-en-scène que marcam, sobretudo, a expressão do medo e do ato violento.
São ideias e achados singulares que acabaram se tornando uma convenção, os códigos de um gênero facilmente reconhecível e bastante explorado pela indústria cultural até hoje.
VAMPIRO-MODELO
Com suas unhas grandes, a cabeça careca, os olhos fundos e as orelhas pontiagudas, Max Schreck parecia, desde então, o protótipo do vampiro ideal.
A sequência em que o monstro adentra o quarto de Ellen, conjugando em cena a figura da atriz Greta Schröder com a sombra de Schreck demoniacamente caracterizado, não pode faltar em qualquer antologia que se preze.
“Nosferatu” estreou no Salão de Mármore do Jardim Zoológico de Berlim em 4 de março de 1922. Dez curtas do francês Louis Feuillade (1873-1925), de 1915, e a produção húngara “A Morte de Drácula”, de 60 minutos de duração, integram a filmografia que ocasionalmente teria aberto caminho para o filme de Murnau.
Mas é ao diretor alemão e ao seu protagonista, que, aliás, pouco aparece na tela, que o cinema deve o vampiro mais famoso do mundo. Muitos diretores – Dreyer, Laemmle, Terence Fisher, Herzog, Paul Morrisey, Dan Curtis, Coppola, Jarmuch… – e atores – Bela Lugosi, Christopher Lee, Jack Palance, Udo Kier, Jack Palance, Klaus Kinski, Tom Cruise, Tom Hiddleston – concordariam com isso.
A viúva de Bram Stoker conseguiu, por meio de ação judicial, dar fim às matrizes do longa de Murnau. Foi reunindo as cópias que escaparam de sua sanha destruidora que se reconstituiu “Nosferatu” para as gerações que vieram depois.
Assistir ao filme com a trilha original de Hans Erdmann (1888-1942), mesmo reconstituída, permanece como uma missão quase impossível.



As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação

Patricia Maiolino e Isa Maiolino
Ana Paula Carneiro, Luciana Junqueira, Beto Silva e Cynthia Cosini


