Quando o grande cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), também um meio-campista de primeira, chamou de “futebol de poesia” o que viu na final da Copa de 1970, entre Brasil e Itália, o volante Francisco Gonçalves Pereira estava a alguns meses de encerrar a sua primeira passagem pelo São Bento de Sorocaba (SP) e há pouco mais de uma década do golaço que fez, em 1959, em uma final contra a Argentina, pela seleção brasileira do Exército, após ninguém menos que Pelé ser expulso.
Aos 83 anos, Mestre Gonça, como a posteridade o consagrou graças à habilidade no domínio da bola, recebeu o repórter do Correio, em sua residência, na Vila Bandeirante, para uma conversa, regada à coca-cola e muita simpatia, em que relembra do início da carreira de atleta, quando precisava faltar ao trabalho para treinar, da amizade com o Rei do Futebol e outros craques, e de sua quase escalação no Operário, maior rival do Comercial, onde atuou até pendurar as chuteiras, em 1978.
Nascido em 1° de abril de 1940, em outra vila, de nome Prosperidade, encravada entre a linha do trem e as várzeas do Rio Tamanduateí, na divisa de Santo André e São Caetano do Sul, no ABC paulista, o mestre não tinha outro caminho se não o gosto pela bola, já que trazia de família um motivo “agravante”.
O pai era um dos cartolas do bairro, tão conhecido pelos nomes “valiosos” de suas ruas e praças (Fortuna, Diamantes, Cristais, Riqueza etc.) quanto pela rivalidade em outras várzeas, entre o União Jabaquara e o Vila Prosperidade, os principais times do lugar.
Não deu outra. Daquela família, de uma vila tão próspera desde a nomenclatura, acabou saindo uma jóia que ainda mantém as dimensões de quando se revelou - 1,80m de altura e 70 e poucos quilos na balança. E que, falando em poesia, já foi comparado, nos versos de Airton Bovo, a gênios da arte e da ciência, como Modigliani e Einstein, pelo que mostrou em campo.
Com vocês, Mestre Gonça:
AUTORRETRATO
Nasci numa vila chamada Vila Prosperidade, que pertence a São Caetano do Sul e comecei a minha carreira no Nacional, de São Paulo. Desde criança fui envolvido com bola.
O meu pai dirigia um time no bairro e comecei a jogar entre os guris, depois fui crescendo. Já com 14 pra 15 anos fui para o São Paulo jogar na base. Jogava eu e o Silva, um centro-avante que foi para a seleção brasileira.
Posteriormente fui para o Nacional. Naquela época não se dava nem passe de ônibus para o guri treinar. E a gente, filho de gente pobre, dificultava. Eu tinha que trabalhar, não podia ir treinar. E fui profissionalizado no Nacional Atlético Clube, lá em São Paulo.
Posteriormente fui jogar no Corinthians, e infelizmente fui emprestado e o Corinthians fez uma péssima campanha. Automaticamente tive que sair porque não conseguimos nada. Fui emprestado por quatro meses. Como só dava Santos na época, foram dez anos, só Santos, Santos…
A mexida não deu certo, porque quase caiu para a segunda divisão. O Corinthians fez uma remodelação no plantel e dispensou muita gente E fui para o São Bento de Sorocaba, que havia subido para a divisão especial do paulista e fui muito bem, fui elogiado, era ídolo lá, onde fiquei bastante tempo e fui para o Juventus (SP), fui para a Venezuela, para a Argentina, enfim, e terminei a minha carreira em Campo Grande.
Vim para jogar Comercial, parei de jogar, trabalhei 20 anos no Comercial. Saí de jogador, fui treinar a gurizada, depois fui supervisor. Sou muito feliz de ter vindo pra cá, de ter jogado aqui. As minhas filhas (Elaine e Beatriz) vieram pequenas e hoje já são avós. Infelizmente perdi a minha esposa (Beatriz Monteiro Gonçalves) faz um ano (e cinco meses), mas Deus está conosco e sabe o que faz.
Era bem diferente de agora. Por exemplo, eu era a base do São Paulo e muito elogiado, diziam que eu tinha muito futuro, mas mesmo assim o São Paulo não dava um passe de ônibus para a gente treinar. Hoje você vê o garoto dente de leite, ele já tem procurador, já tem até tudo, alojamento. Na época não tinha nada e você tinha que se virar. Você trabalhava, e perdia dia de serviço para ir treinar.
POSIÇÃO EM CAMPO
Sou volante. Eu tinha um amigo que jogava na base do São Paulo e um dia ele falou assim: “Gonçalves, você quer ir jogar na base do São Paulo? Eles estão precisando de um zagueiro lá”. “Eu não sou zagueiro, sou volante, mas vamos lá”. Aí eu peguei e fui. O São Paulo tinha vendido o Canindé para a Portuguesa e fomos treinar em outro bairro. Comecei e o treinador gostou de mim.
Um dia ele falou pra mim “você não é zagueiro não, tem que ser volante. Você é clássico demais e jogador muito clássico tem que jogar como volante, ou meia esquerda. Porque você passa bem a bola, domina bem e ali atrás você não pode jogar porque você vai querer fazer isso e no fim toma gol”.
E com isso eu fui indo, fui indo e me tornei um volante mesmo. Porque eu passava muito bem a bola e dominava muito bem. Hoje tem um volante no clube que é marcador, né? Naquela época não. O volante ou o meia-esquerda era quem coordenava o time. Só tinha craque nessa posição. Eu dominava por aqui assim (o ex-jogador aponta para o maléolo, na lateral externa do tornozelo direito). A bola vinha e eu dominava. Todo mundo admirava. Eu era muito habilidoso, dominava no peito, dominava no calcanhar e passava muito bem a bola. Para me marcar ou me desarmar, era ruim pra caramba.
GOLS
Foram poucos gols. Eu fazia muitas jogadas pros caras fazerem gol. Eu passava muito bem a bola, dominava bem como volante. Além do gol, o cara deve saber passar bem a bola para o companheiro em campo. Treinam muito cruzamento hoje justamente para o centroavante, que está sempre mais perto do gol.
Me lembro de um gol que eu fiz no Nacional lá em São Paulo contra a Portuguesa, jogando no Canindé. Empatamos. Foi uma jogada fora da área. A bola sobrou pra mim e o goleiro geralmente sai. E eu meti por cima da defesa, do goleiro. Esse gol me marcou bastante.
E o outro gol que eu lembro bem foi quando eu estive na seleção militar lá no Rio de Janeiro contra a Argentina. O Pelé saiu expulso; acho que antes de terminar o primeiro tempo. Aí ficamos com dez e a Argentina era boa pra caramba. Eu sei que, no final do jogo, sobrou uma bola pra mim de fora da área e eu também chutei e fiz um gol, né? Dei o gol do título (risos), foi 2 a 1 pra nós. Foi no campo do Botafogo na época. 1959. Quando o campeão brasileiro foi o Bahia.
E mais um gol que eu fiz lá em Cuiabá contra um misto, isso já em setenta-e três.
ÍDOLOS
A qualidade do jogador faz falta hoje. Antigamente tinha qualidade. Eu, por exemplo, cresci, tinha jogador que eu só conhecia (visualmente) batendo figurinha. Zizinho, Didi, para mim era um negócio de outro do mundo. Só conhecia por ver em figurinha. Muito rádio, não tinha televisão. E ainda consegui jogar com muitos desses. Eu estava começando e eles, com uma certa idade.
PELÉ
Quando Pelé começou (no Santos), eu também comecei. Fui levado por um treinador que tinha muito acesso ao Nacional e o Nacional disputava a série A de São Paulo. Depois, no ano seguinte, fomos servir o quartel. Eu, Pelé e vários jogadores que eram profissionais e tinha que servir no quartel. O Exército valorizava muito o futebol na época e foi formada uma seleção brasileira e nós saímos campeões jogando contra a Argentina lá no Rio de Janeiro.
O Santos e o Nacional disputavam a mesma categoria e nós tomamos de dez a zero. O negrão, acho que ele fez uns quatro ou cinco gols. Acabou esse campeonato, aí veio o negócio do Exército. Eles iam na federação paulista, por exemplo, saber quem era o profissional que estava na idade de servir.
Calhou, para você ver, que em cinquenta-e-nove (1959), o time titular nosso era (o ponta direita Roberto Ludovico) Bataglia (1940-2002), que jogava no Corinthians (de 1958 a 1961 e, posteriormente, de 1965 a 1968), o Parada era do Palmeiras (o centroavante Antônio Parada Neto, nascido em 1939 e falecido em 2018, que atuou no alviverde de 1957 a 1960, o Pelé, do Santos; o Lorico (o volante José Farias Lorico, nascido em 1940 e falecido em 2010) é um que jogou no Vasco e na Portuguesa; e o Parobé (o ponta esquerda João Mallman, nascido em 1938 e falecido em 2011) é um gaúcho que veio do sul pro Corinthians.
Lá atrás tinha o Nelson (Nélson Alves Moreno, nascido em 1940 e mais conhecido como Nelson Coruja) que fez dupla de zaga (anos depois) com o Luís Pereira (nascido em 1949) no Palmeiras. Quer dizer, era só profissional. Houve essa seleção brasileira e o negrão já era campeão do mundo. Se a gente saía pro interiorzão, aí era… puta merda. Eu ficava muito admirado. Ficava assim do lado e falava “puta que pariu, que moral tem esse negrão, viu”.
Ele era muito bom em campo. Pelé era o seguinte: um atacante que olhava só para frente. Eu me lembro de que quando nós fomos jogar em Santos e perdemos de goleada, ele ficava brabo quando os caras (do Santos) ficavam trocando bola lá na defesa santista. Ele queria a bola lá pra frente, ele queria fazer gol. Estava certo, né. Mas muito boa pessoa. Tratava a gente bem pra caramba. Foi muito bonito ter essa amizade com ele, ver as coisas que eu vi.
Um dia fomos a um canal de televisão e lá cantavam o João Gilberto (1931-2019) e a Ângela Maria (1929-2018), que eram os reis, né? Éramos todos de fardinha e bonézinho. Quando entramos e perceberam que era ele, passaram a mão nele e levaram para o palco. Deu uma parada na música e aí era só bola, bola.
UMA AMIZADE
Lembrei de um puta cara. Ele jogou no Palmeiras, mas ele era do Bahia nessa época. Vicente Arenari (1935-2013). Conheci ele jogando pelo Bahia quando o Bahia foi campeão. O Bahia foi campeão ganhando do Santos, e ele era quarto zagueiro. Da Bahia, ele foi pro Palmeiras. Com Santos, Corinthians, Palmeiras e o Bahia tinha um timão.
Acabou (o campeonato) e a maioria dos jogadores saíram de lá, e Vicente saiu também. Valorizou pra caramba. E o Vicente veio para São Paulo para jogar no Palmeiras. Eu, como jogador de futebol, vim aqui para Campo Grande, e precisou de um treinador, eu fui a São Paulo atrás do Vicente e trouxe ele pra cá e foi muito querido. Treinou aqui umas duas ou três vezes. Uma pessoa espetacular. Grande jogador e grande amigo.
Tenho uma grande lembrança desse meu amigo, que infelizmente já se foi. Uma pessoa digna, que merecia tudo de bom, como jogador e como homem.
COMERÁRIO
Tenho muita lembrança de que, quando cheguei aqui, o Operário estava melhor. Tinha mais jogadores que tinham aparecido, contratados, e eu vim pra cá, pedi para eles que contratassem o Copel, que jogava comigo no São Bento e jogou no Santos e no Palmeiras e fui indicando uns jogadores para eles.
Teve um jogo, porque aqui estava se iniciando o profissionalismo em 1973. O Morenão inaugurado em setenta-e-dois e o profissional em setenta-e-três.
Nós estávamos jogando uma partidinha lá em Cuiabá, um amistoso, e quando voltamos já estava perto do campeonato brasileiro. Então houve uma melhor de três. E quem ganhasse disputaria o campeonato brasileiro. Seria o primeiro o campeonato brasileiro que Campo Grande iria participar e nós ganhamos de 2 a 1 do Operário.
Nós ganhamos de 1 a 0 no primeiro jogo. E o segundo jogo foi 2 a 1. O Morenão lotado.
Joguei uns quatro anos no Comercial (antes de parar e passar a treinar). Tinha um treinador chamado Bauer, que foi um grande jogador. Cheguei e ele era o treinador do Comercial. E foi passando esse tempo e ele mesmo falou pra mim “Gonçalves, a melhor coisa é você ficar comigo aqui do lado, me auxilia e tal…”. Já estava mudando muito o futebol e eu falei “tudo bem”. Ele foi embora e eu fiquei de treinador do profissional.
Antigamente se revelava muito guri para o profissional, mas enquanto eu estava ali, eles não jogavam. Um dia me chamaram, eu já estava com uns 34 anos, fizeram uma reunião e falaram “Gonçalves…”, fizeram uma proposta. “Nós queremos você para trabalhar aqui conosco, ficar aqui como funcionário, se amanhã precisar de você jogar, você joga”.
Tinha garotos bons, que podiam jogar no meu lugar e o menino não jogava porque eu estava lá. Falaram assim “você quer?”. Falei “não”; porque você nunca pensa em parar. “Então vamos fazer o seguinte: você vem só receber. Enquanto não arrumar o clube, você vem receber o salário”. Aquilo me encheu de alegria. Se todo ex-jogador tivesse essa chance de o clube querer você e pagar.
Vim, na verdade, pra jogar no Operário. Mas, quando cheguei na banca de revista e vi no jornal, (o Comercial) tinha uns dois ou três jogadores que jogavam em São Paulo, da Portuguesa, do São Paulo, ou que jogavam na seleção.
Olhei e pensei “se esse Comercial está com esses jogadores deve ser o melhor, né?”. Me levaram pro hotel e perguntei onde treinava esse pessoal. Fui lá na Belmar Fidalgo, já tinha acabado e aí me levaram lá no Hotel Gaspar, mas eu estava em outro hotel. Me viram e me abraçaram perguntavam o que estava fazendo ali. Disse que iria fazer contrato com o Comercial, disseram “não, você vai é para o Operário”. Eu disse “não, preciso me apresentar”.
Chego lá no Morenão para treinar e o diretor me chamou e falou assim “o Gonçalves, o negócio é o seguinte. Você demorou para vir e nós já contratamos, infelizmente não vai dar certo”. Aí acertaram comigo a passagem. Mas como eu já tinha ido atrás desses meus amigos e quando me viram, ficaram loucos dizendo que eu iria pro Comercial.
Entrei no hotel, o cara já fez uma proposta lá pra mim e falei “tá legal”. Fui a Sorocaba e daí uns meses voltei e trouxe a minha família e começamos a jogar. E veio essa melhor de três pra que iria disputar o brasileiro. Estou na (Rua) 14 (de Julho) e dou de cara com o treinador que era do Operário.
Quando cruzou comigo, ele veio e me abraçou e disse “eu dei uma mancada, na hora que vieram falar pra mim que você estava chegando, eu falei para eles, ‘não, Gonçalves está muito velho, não dá não’”. Foi ele que me vetou. Aí eu comecei a jogar bem pra caramba e ele veio pedir desculpa pra mim, eu falei “não dá certo ali, dá certo aqui”.
AOS JOVENS
Sempre falo para essa gurizada que eles têm que se dedicar, fazer direitinho o que o treinador está pedindo. Porque antigamente não tinha esses treinamentos para os guris. Se estão treinando base, aqui você treina tudo, domínio, toque de bola, tudo. Tudo que se faz no exterior, faz aqui.
Antigamente não tinha isso não desses treinamentos. Então falo que eles têm que se dedicar. Hoje se você vai fazer um teste num clube já está cheio de empresários, os caras que mexem com a gurizada para levar pra cá, levar pra lá. Hoje é diferente.
Antigamente você saia daqui do campo do Comercial e a gente ia lá para o Jockey Club. Você dava aquelas voltas terríveis, só cavalo mesmo. Já pensou? Era duro, hein? Aquilo foi feito para cavalo. E era areia, né? Hoje não. Hoje você vê que mudou para uma coisa melhor.
Todo clube profissional tinha sapateiro, um cara que cuidava da chuteira (que pesava, em média, três vezes mais que os 150 gramas da atualidade, cada uma). Hoje parece apenas um sapato com o qual você entra para jogar. Quando eu era gurizão a bola era toda um amarrão, feia pra caramba.



As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação

Patricia Maiolino e Isa Maiolino
Ana Paula Carneiro, Luciana Junqueira, Beto Silva e Cynthia Cosini


