Integrante da Ginga Cia de Dança, a bailarina de Campo Grande é um dos nove artistas do País selecionados pela Bolsa Funarte Brasil Conexões Internacionais a integrar o Focus Dance, espaço do evento que funciona como vitrine e ponte para troca de ideias com programadores, curadores e coreógrafos. “A dança é a maneira como enxergo o mundo”, diz Maria Fernanda diretamente de Lyon, onde faz uma apresentação solo no dia 18.
A BOLSA DA FUNARTE
Considero muito interessante a proposta de reunir diferentes jovens criadores que atuam no Brasil para representar a dança brasileira na Bienal de Dança de Lyon [em sua 21ª edição], um dos eventos mais importantes do mundo. Vejo como valiosa a iniciativa da Funarte em fortalecer os laços culturais entre Brasil e França por meio de seus jovens artistas, que certamente poderão colher muitos frutos dessa experiência.
O NOVO SOLO
Quem a Mim Nomeou o Mundo? é um solo de dança contemporânea em que eu tenho o intuito de questionar quais são as palavras que moldam os sujeitos e os corpos, tendo em perspectiva essa reflexão sobre o que é gênero. A partir do corpo-depoimento, em cena eu investigo minhas dúvidas, angústias e minhas percepções sobre o que é ser nomeada enquanto mulher, quais as limitações que simbolicamente são colocadas sobre o corpo das mulheres que as impedem de ser livres, de fazer o que querem, e de pensar livremente.
São imposições ao feminino que cerceiam a forma de ver o mundo, as possibilidades do corpo e da existência. Reconhecendo que o debate de gênero é amplo e atravessado por muitas questões que envolvem diferentes sujeitos mas que, no espetáculo, o recorte estabelecido é a partir das minhas experiências em cena. Eu chamo a Vanessa Macedo (que co-dirige a montagem com Fernanda) justamente por reconhecer na pesquisa dela, na pesquisa sobre o corpo-depoimento, algo que é muito caro quando pensamos no trabalho de cena na contemporaneidade.

É um espaço em que os sujeitos podem falar de si, da sua subjetivação, ao mesmo tempo em que se relacionam com a “outridade”. O espetáculo também reflete sobre mulheres que me inspiram, nas quais busco referências, e sobre os discursos que atravessam a ordem das coisas. A Vanessa traz sua “pérola rara”, seu olhar e sua forma de pensar, que sempre admirei mas que agora pude admirar mais de perto.
Trabalhar com ela me permitiu compreender um pouco sobre sua linguagem, que pra mim sempre foi muito instigante, provocativa, onírica, que faz eu querer saber mais sobre tudo o que ela pensa e produz. A pesquisa corporal do solo é diferente da que faço no coletivo, em que naturalmente é preciso negociar e dialogar com meus pares.
No solo, a corporeidade leva mais o que venho pesquisando, o que permite uma assinatura mais clara do que pretendo fazer.
CHICO NELLER
Comecei a dançar aos quatro anos e, neste ano, completo 21 anos de dedicação à dança. Profissionalmente, iniciei em 2019, muito graças ao estímulo de Chico Neller, que me convidou para integrar a Cia do Mato e a quem devo muito de tudo que sei. Foi ali que comecei a atuar de forma profissional.
Em 2021, recebi o convite para entrar na Ginga e, a partir daí, minha trajetória na dança foi se intensificando cada vez mais, no sentido da profissionalização dessa atividade que sempre esteve presente no meu cotidiano.
As companhias, especialmente o estímulo do Chico, foram fundamentais para que eu enxergasse a dança também como uma possibilidade de profissão. Embora minha formação acadêmica seja em psicologia, considero a dança a minha primeira profissão, já que a psicologia veio depois.
Ao longo desse processo, além de atuar como bailarina, passei a desenvolver outras atividades ligadas à dança: produção cultural, gestão e elaboração de projetos.
COMPANHIAS
Tenho buscado constantemente me aperfeiçoar e ampliar minha formação nessas áreas, o que hoje me permite trabalhar tanto nas companhias [Cia do Mato e Ginga] quanto em projetos independentes. Considero essa diversidade muito enriquecedora, pois gosto de trabalhar em coletivo e me sinto honrada em fazer parte das duas companhias mais antigas do nosso Estado. Com meus colegas e com Chico aprendo muito: nosso trabalho é intenso, baseado em pesquisa e troca constante, o que alimenta profundamente meu percurso artístico.
Nos últimos anos, no entanto, também tenho sentido o desejo de desenvolver trabalhos individuais [solos e pesquisas autorais] que me permitam construir uma linguagem e assinatura próprias. Acredito que esse movimento de pesquisa individual se retroalimenta com o trabalho coletivo: o que desenvolvo como artista independente fortalece minha atuação dentro das companhias, ao mesmo tempo em que o coletivo inspira e sustenta minhas investigações pessoais.
Para mim, esse equilíbrio é essencial para me tornar uma artista mais consciente do meu corpo, da minha linguagem e da forma como posso contribuir com o coletivo. As diferenças entre os trabalhos são muitas.
Talvez por eu estar mais acostumada ao trabalho em coletivo, sinto mais facilidade em produzir e pensar com outras pessoas.
Já a experiência como artista independente é mais recente para mim, e percebo a diferença justamente nesse aspecto: há menos gente para trocar ideias e eu passo a seguir muito mais a minha intuição, minhas sensações, meus ideais e meu entendimento de dança. É um processo mais interno.
Ao mesmo tempo, percebo que nenhum trabalho solo é totalmente solitário. Sempre buscamos alguém para colaborar, assistir ao espetáculo, conversar e trocar ideias. Então, embora seja um desafio, é também uma experiência muito boa. Nesse momento em que estou desenvolvendo meu trabalho solo, percebo que ele nunca é tão “solo” assim.
REPRESENTAR MS
Falar em representar a dança de Mato Grosso do Sul na França é complexo. Isso porque a dança do nosso estado é extremamente plural e diversa, com muitos fazedores de dança em diferentes perspectivas.
No caso específico deste edital, dentro dos critérios estabelecidos, acredito que meu trabalho se encaixou. Mas não penso que eu represente “a” dança do Estado em sua totalidade. O que levo é “uma” das danças possíveis. Aquela que desenvolvo na pesquisa em dança contemporânea, sempre atravessada pelas formas de viver em Mato Grosso do Sul, pela nossa política, economia, fauna, flora e regionalidade.
Busco que minha dança e a dança que faço nos coletivos que integro dialoguem com a realidade social e contemporânea da nossa Região. Não é uma dança feita apenas para entreter, mas para questionar, provocar e ressignificar imagens cristalizadas no imaginário coletivo sul-mato-grossense. Nesse sentido, sinto que represento uma possibilidade de dança que nasce do meu trabalho e das companhias com as quais atuo, mas poderia ser qualquer um dos meus colegas.
Ao mesmo tempo, o fato de ter sido selecionada como única representante do Estado me parece importante não apenas pelo reconhecimento externo, mas, sobretudo, para que a comunidade local perceba o valor da dança enquanto profissão.
Ainda hoje, no Brasil e em Mato Grosso do Sul, o profissional da dança não é amplamente reconhecido como um trabalhador essencial para o desenvolvimento simbólico e econômico de uma comunidade. Poder estar aqui é um modo de afirmar que esse ofício existe e é vital.
Chegar a Lyon e testemunhar a forma como eles celebram a dança me emocionou. Ver pessoas de todas as idades dançando nas ruas, perceber o espaço central que a dança ocupa nesse festival, foi inspirador, mas também impactante porque expõe a distância em relação à nossa realidade em Campo Grande, que recentemente foi apontada como a capital que menos consome cultura no Brasil.
NÃO ME APEGO
O rótulo de “representar a dança sul-mato-grossense” não me atrapalha porque não me apego a ele. Pelo contrário, vejo nele uma oportunidade de chamar atenção não apenas do público externo, mas principalmente do público interno, para que as pessoas de Mato Grosso do Sul voltem o olhar para quem produz dança, conheçam, apoiem, compareçam ao teatro e entendam a importância de fomentar esse trabalho.
O que buscamos não é só reconhecimento institucional, melhores condições de trabalho ou direitos assegurados, embora isso já seja essencial.Mas também que a dança esteja inserida no cotidiano das pessoas, que ir ao teatro não seja um privilégio, mas uma prática naturalizada.
Por isso, mais do que carregar um título de representação, sinto-me parte de uma história maior, construída por tantos artistas que vieram antes de mim e tornaram possível que hoje eu possa chamar a dança de profissão.
POR QUE DANÇAR?
Essa é uma pergunta que me faço recorrentemente. Não é uma profissão fácil: traz muitos desafios e exige de quem a pratica uma dedicação de vida inteira.
O que me move, no entanto, é o desejo. Tenho um desejo imenso de dançar, de produzir, de criar. Apesar de ser um trabalho exigente e desafiador, a dança me realiza profundamente como pessoa e isso já é suficiente para me manter em movimento, produzindo e trocando.
Também acredito na dança como uma poderosa forma de subjetivação, de emancipação humana e de promoção de autonomia. Essa crença no papel social da dança para além de sua dimensão cultural é o que me faz enfrentar as dificuldades e continuar.
PÉROLA RARA
Se eu tivesse que definir a dança, diria que para mim ela é a maneira como enxergo o mundo, a maneira pela qual compreendo as relações humanas e pela qual encontrei de ser, estar, pensar e desejar.
Há uma definição de dança que ouvi de Morena Nascimento durante uma residência que fiz com ela e que levo comigo até hoje. Ela disse que a dança é uma pérola rara.
Essa imagem me marcou profundamente, porque sinto que a dança realmente é isso: uma pérola, algo raro e precioso que não pertence apenas a quem a pratica, mas também ao público. É rara no sentido de ser potência, de transformar, de atravessar vidas, de criar sentido.
Por isso, acabo tomando emprestada essa definição de Morena para mim também, pois acredito que traduz de forma muito bonita o que a dança representa na minha vida.








Neli Marlene Monteiro Tomari e Yosichico Tomari, que hoje comemoram bodas de ouro, 50 anos de casamento - Foto: Arquivo Pessoal
Donata Meirelles - Foto: Marcos Samerson


