Parece que Maria Fernanda Figueiró não quer nada fácil. Depois de empreender um circuito alternativo por Campo Grande, pilotando em parceria com Halisson Nunes o projeto No Bueiro (2024), que levou um elenco numeroso e diverso de artistas para dançar em bares, casas noturnas e vias públicas da cidade, ela mergulhou numa parceria com Vanessa Macedo, coreógrafa potiguar radicada em São Paulo e foi parar na Bienal de Lyon.
Considerado o principal evento de dança contemporânea do planeta, a Bienal meio que atualiza, a cada edição, um panorama dos caminhos trilhados por quem se propõe a renovar a expressão do corpo e do movimento por meio de poéticas que transcendem os bailados mais tradicionais e repõem a condição do indivíduo – o que dança e o que testemunha, causando impacto – em outros termos. Não mais o decalque corporal do cotidiano que amordaça vontades e arbítrios.
É na pesquisa, na investigação e, sobretudo, na liberdade da improvisação que vai se dando um possível método de trabalho. Maria Fernanda foi por esse caminho, desde muito antes do momento que teve em Lyon. Acabou se inscrevendo em uma seleção da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e assim chegou à França, com outros oito nomes de diferentes estados que integraram a comitiva. O solo “Quem a Mim Nomeou o Mundo?”, que estreia em Campo Grande amanhã já estava entranhado em seus músculos e sentimentos.
O que o público do Sesc Teatro Prosa poderá acompanhar amanhã, em duas sessões, às 16h e às 19h, com entrada franca (via Sympla), talvez seja uma versão mais completa – e já depurada – do que a performer mostrou em Lyon, no dia 18 de setembro, na seção Focus Dance. Trata-se da indagação que a dançarina dirige a si e a plateia para fustigar entendimentos ou mais perguntas sobre o passe que a sociedade exerce sobre qualquer um de nós a todo o tempo.
Na última conversa que tivemos, há algumas semana, ela reiterou o quão desafiador é praticar a dança como um ofício e confessou ser movida pelo desejo “imenso” de dançar. A formação em psicologia tornou-se um background poderoso para que esse desejo se encaminhasse nas proposições da experimentação e da militância que a artista vem buscando por uma afirmação da dança.
Como trabalho, como expressão cultural e como emancipação do indivíduo, por meio da retomada de sensibilidades, dança torna-se um gesto de libertação coletiva.
Ainda que “sempre atravessada pelas formas de viver em Mato Grosso do Sul, pela nossa política, economia, fauna, flora e regionalidade”, para Maria Fernanda é do indivíduo que se trata. A criadora anuncia “Quem a Mim Nomeou o Mundo?” como uma proposta de dança contemporânea para questionar quais as palavras que moldam os sujeitos e os corpos, tendo em perspectiva a reflexão sobre o que é gênero.
“A partir do corpo-depoimento, em cena eu investigo minhas dúvidas, angústias e minhas percepções sobre o que é ser nomeada enquanto mulher, quais as limitações que simbolicamente são colocadas sobre o corpo das mulheres que as impedem de ser livres, de fazer o que querem, e de pensar livremente”, disse ela durante o papo em setembro.
“São imposições ao feminino que cerceiam a forma de ver o mundo, as possibilidades do corpo e da existência. Reconhecendo que o debate de gênero é amplo e atravessado por muitas questões que envolvem diferentes sujeitos mas que, no espetáculo, o recorte estabelecido é a partir das minhas experiências em cena”, afirmou.
IMPACTO
De volta a Campo Grande, na conversa que tivemos na segunda-feira, portanto, às vésperas de mostrar o novo trabalho à plateia de Campão, ela recupera Lyon, onde permaneceu por pouco mais que duas semanas. “Observar uma cidade onde a dança tem um lugar de destaque, onde as pessoas anseiam assistí-la foi algo que nunca tinha visto antes. A agenda por lá era bem cheia visto que a Bienal tinha uma programação carregada de ações desde workshops, espetáculos, bate-papos e festas, então, basicamente, ficávamos o dia inteiro, de manhã até à noite, dialogando e pensando a dança”, relata.
A expressiva quantidade de espetáculos de dança disponíveis na programação, “similar a quantidade de teatros que Lyon possui”, também a deixou pasma. “Teatros de todos os tamanhos e tipos, uns mais aconchegantes, outros mais imponentes. Teatros numerosos localizados em distintos espaços da cidade, fazendo eu ainda voltar com a sensação de que não cheguei a conhecer todos os teatros que a cidade abriga. Isso me deixou muito reflexiva”, conta a artista.
TROCAS
“A Bienal foi um grande espaço de trocas. Todos os programadores e artistas que estavam presentes possuíam o intuito de estabelecer conexões, divulgar seus trabalhos, conhecer como é a dança do outro lado do mundo. Isso foi algo que muito me surpreendeu, a disponibilidade de todos em estabelecer relações, mesmo em uma língua diferente: todo mundo queria se entender em dança”, prossegue Maria Fernanda.
“Trago ainda um profundo carinho pelos colegas brasileiros que foram comigo representando a comitiva brasileira, artistas que fazem a dança em diferentes lugares do nosso País, preservando nossas tradições populares e nossa cultura. Conhecê-los e ter experienciado a Bienal ao lado deles foi muito significativo para mim”, diz a dançarina, que integra a Ginga Cia. de Dança e a Cia. do Mato.
DANÇA EM CG
“Além de vislumbrar uma cidade onde a dança é colocada em um patamar de prioridade como tinha que ser, a viagem despertou em mim o desejo de que isso aconteça um dia em Campo Grande: que nossa dança seja valorizada, colocada em lugar de importância, fortalecida, e que tenhamos um dia tantos teatros distribuídos por nosso território que os turistas não tenham tempo de conhecer todos os teatros disponíveis”, projeta.
“Toda viagem transforma um pouco a gente. Acredito que essa me transformou ao me mostrar que não é tão utópico assim imaginar que uma cidade pode ter um espaço cultural dedicado exclusivamente a espetáculos de dança, e que sua população compre ingressos para assistir toda a temporada de dança de um determinado ano. Ou então, de que não é tão imaginável assim pensar que uma cidade inteira pode se mobilizar para acompanhar e lotar todas as ações de uma bienal ou festival de dança, marcando seu interesse em preservar seus fazeres”, afirma.
“Tento não ser utópica e gosto de contar mais com a materialidade do mundo, entretanto, é quase impossível não sonhar e desejar que um dia tenhamos as mesmas estruturas, financiamentos e apoios para fazer a dança, afinal, artistas incríveis isso nós já temos”, pontua a artista campo-grandense.
ORGULHO
“Sou uma admiradora incurável da dança contemporânea brasileira. Acho que o nosso fazer é muito singular e muito importante no que tange a produção de um fazer significativo e que muito diz a quem assiste. Na viagem pude constatar isso mais uma vez ao assistir companhias brasileiras que estavam na programação, como Lia Rodrigues, Cena 11, Original Bomber Crew, entre outros”, exulta Maria Fernanda.
“Dava um orgulho danado, de ver que nossa produção é diversa e extremamente potente. Ainda nesse sentido, senti que as produções das companhias de outros países possuem uma densidade e dilatação que muito me interessou. Espetáculos que contam com uma estrutura de produção e iluminação que são impressionantes, e isso, com certeza, impacta na forma de fazer e pensar uma obra”, observa a dançarina.


