“Hoje me sinto tranquila e determinada a começar o ano com força total, apoiando minhas equipes e meus parceiros. Tenho a certeza de que o futuro será promissor, tanto com a sustentabilidade quanto com a tecnologia”.
Quem ouve Mercedes Gabriela Trindade falar assim nem imagina a barra que ela passou há bem pouco tempo. Ou talvez ainda esteja passando. Mas a força e a capacidade de superação que demonstra parece ser algo maior que qualquer tragédia.
Jornalista e empresária, a venezuelana de 33 anos radicada em Campo Grande teve um 2024 promissor com a Terateks, a startup que criou com o objetivo de transformar resíduos alimentares em biomateriais para a indústria têxtil, o que vem fazendo com que ganhe destaque no segmento da moda pelo pioneirismo na produção de biocouro a partir de mangas descartadas.
De malas prontas para cruzar o Atlântico ao lado do marido, Cristiano Trindade, em novembro do ano passado, Mercedes teve que mudar de planos três dias antes da viagem.
“Ele foi meu marido por quase 10 anos e a razão pela qual decidi morar no Brasil. Na quarta-feira de 6 de novembro, ele faleceu no mesmo dia em que foi internado no hospital. Cristiano era um homem saudável, esportista, trabalhador, sem histórico de doenças aparentes. Contudo, cinco dias antes de sua partida, começou a sentir falta de ar e um incômodo no peito”, conta a empresária.
“Dois meses após seu falecimento, descobrimos que ele sofria de uma condição extremamente rara chamada miocardite de células gigantes. Trata-se de uma doença inflamatória grave do músculo cardíaco, de evolução rápida e silenciosa, com menos de 300 casos registrados no mundo. Por sua natureza fulminante, não existem tratamentos medicamentosos eficazes, e o único recurso seria um transplante de coração”, diz a venezuelana.
“O mais difícil foi que tínhamos uma viagem programada para o sábado seguinte, dia 9 de novembro, para participar do Web Summit 2024, em Lisboa, [onde o casal faria a exposição do case da Neuroteks, empresa de inteligência artificial jurídica que administravam juntos]”, revela.
“Estávamos muito animados com essa experiência, mas hoje eu consigo compreender que ela não deveria acontecer. Dado o desconhecimento da condição de Cristiano, não era recomendável que ele embarcasse em um avião, o que poderia ter resultado em uma calamidade ainda maior”, pondera.
INFÂNCIA E BRASIL
“Como esposa, tomei a decisão de autorizar o uso do coração de Cristiano para pesquisa, em parceria com professores da UFMS [Universidade Federal de Mato Grosso do Sul]. Meu objetivo é de que, no futuro, essa doença seja melhor compreendida, oferecendo às pessoas mais chances de diagnóstico precoce e tratamento adequado”, afirma a empreendedora, que nasceu em Caracas, mas morou até os 16 anos em El Junquito – “uma cidade pequena e turística”.
“Foi uma infância muito especial, cercada por uma comunidade acolhedora e colaborativa. Aos 16 anos, me mudei para cursar Contabilidade na faculdade, mas logo percebi que não era a minha paixão e migrei para a Comunicação Social, algo que sempre foi mais alinhado à minha criatividade”, conta.
“A vida na Venezuela era muito boa, as pessoas são muito calorosas. Caracas é uma cidade incrível, com a vantagem de estar a 30 minutos da montanha ou da praia. Apesar da crise política, o venezuelano tem uma incrível capacidade de se reinventar e seguir em frente diante dos desafios”, prossegue.
A conexão de Mercedes com o Brasil começou aos 16 anos, quando visitou o Rio de Janeiro (RJ) e se apaixonou pelo País.
“Anos depois, conheci meu esposo e decidi começar essa aventura. Fiz um intercâmbio na Unisinos, em Porto Alegre [RS], onde estudei moda e acabei ficando. Já estou aqui há 9 anos e 6 meses. Atuei no jornal Últimas Notícias, na Venezuela, e aqui em Campo Grande trabalhei no Mídia News. Na área de jornalismo, foquei mais em relações públicas e na criação de conteúdo para diversas marcas”, relata a empresária, que afirma ainda que sempre quis ter a sua própria marca de moda.
A MANGA
“Mas eu queria algo sustentável, que respeitasse a natureza. Durante minhas pesquisas sobre biomateriais, me deparei com estudos sobre couro feito a partir da manga. Isso fez total sentido, considerando que Mato Grosso do Sul produz muita manga e que boa parte é desperdiçada. Comecei a testar em casa e os resultados foram animadores. Foi assim que nasceu a Terateks, que desenvolve biomateriais para a indústria utilizando insumos orgânicos sem químicos e criando um material biodegradável que não deixa resíduos plásticos”, diz Mercedes, que também assina o podcast Ela Pod Mais e o perfil no Instagram @mercedesgabrielatrindade.
“Utilizamos toda a manga, exceto o caroço, e extraímos a celulose a partir do processamento da polpa com materiais orgânicos. Estamos aprimorando a nossa fórmula em parceria com laboratórios, buscando criar um biomaterial semelhante ao couro. Chamamos de biocouro por ser o termo utilizado internacionalmente, mas no Brasil há regulamentações que limitam o uso da palavra couro para produtos sintéticos. Nosso objetivo é internacionalizar a marca, por isso, mantemos essa nomenclatura”, detalha.
Mercedes destaca, entre os apoios recebidos, o aporte do Living Lab MS, do Sebrae-MS.
“Com eles, estruturamos uma linha de trabalho para desenvolver nossa marca e criar um produto final que fosse mais acessível ao mercado. Inicialmente, planejávamos produzir itens finais, mas percebemos que seria mais estratégico começar com o tecido”, revela a empresária.
FUTURO
De volta à morte repentina de Cristiano, Mercedes diz que o impacto foi enorme.
“Pessoalmente, estou me adaptando a uma nova rotina e lidando com a saudade. Profissionalmente, assumi o cargo de CEO da Neuroteks. Agora divido o meu tempo entre a Neuroteks, a Terateks e os projetos do Ela Pod Mais. Me manter ocupada tem sido fundamental para seguir em frente com esse propósito”, conta a venezuelana, demonstrando uma força que não para de surpreender quem a ouve.
“Neste ano, quero expandir a Neuroteks e internacionalizá-la, formar parcerias com laboratórios para finalizar a fórmula da Terateks e iniciar nossa inserção no mercado nacional. Também quero continuar com o projeto Eleva do Ela Pod Mais e lançar um podcast sobre o luto chamado O Dia Depois, abordando diferentes formas de enfrentar essa experiência. Será um ano de recomeços, focado no bem-estar das pessoas e no cuidado com o nosso planeta, nosso maior bem de luxo”, planeja. Bravo, Mercedes.
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