O que sentiu ao tomar conhecimento de que a invasão em Brasília provocou a destruição de obras e muitos danos ao acervo artístico dos prédios públicos?
O primeiro sentimento que vem é um sentimento de descrédito. Não é possível que isso aconteceu, que a gente tenha chegado a esse ponto de ver aquelas imagens que nós vimos. E depois o sentimento de tristeza mesmo.
O que a gente deixou de fazer para que uma parcela da população tivesse um pensamento tão pequeno, tão apequenado sobre a realidade?
Tomando o Di Cavalcanti como exemplo, o que se perde com o esfaqueamento de “As Mulatas” [1962]? Nem falo da cotação da obra, que chega a R$ 20 milhões.
As facadas, os cortes, as perfurações na obra do Di Cavalcanti doem. Doem na gente, sim. Porque a gente enxerga ainda uma sociedade intolerante, a gente vê a ignorância quando isso acontece. Dói, e a gente pensa e junta forças para não perder as esperanças.
Mas não houve ali uma perda em termos materiais do patrimônio artístico que, simbolicamente, torna-se irreparável?
Acho que é um perder muito momentâneo. Porque a gente tem de transformar essa sensação justamente em continuar, melhorar, aprimorar, em transformar e formar cada vez mais pessoas que sejam capazes de dialogar sobre o mundo em que a gente vive.
Essas facadas mostram para a gente a incapacidade de diálogo das pessoas que agem nesse impulso, na raiva, nessa ideia de não conseguir sentar, enxergar o mundo, ver outras ideias, outras possibilidades, conversar com os diferentes.
Essas facadas são, sim, violentas, elas agridem a gente.
Mas, ao mesmo tempo, elas nos mostram a necessidade constante de a gente não perder a esperança, reconhecer essa intolerância, esse ódio que está presente na sociedade e mostrar, pelo caminho da arte, o quanto a gente pode ser uma sociedade melhor, pessoas humanas que refletem, dialogam e que produzem a arte, o amanhã.
E que constroem de uma maneira melhor, em que todas as pessoas estejam incluídas.
A senhora atua na ampliação do repertório de alunos e para formar profissionais com uma maior capacidade de compreender o papel da arte na sociedade. De modo geral, como a universidade brasileira tem cumprido essa função?
A partir do que aconteceu no dia 8 de janeiro, eu vejo muito claramente a necessidade de a gente continuar e ampliar o ensino de arte nas escolas e fora das escolas. Qual a função, qual o objetivo do ensino de arte nas escolas?
É justamente a gente conhecer para além do nome de um artista, para além do nome de uma obra.
Por exemplo, a gente não vai conhecer apenas o Di Cavalcanti e a obra que foi danificada, perfurada pelos vândalos que invadiram a sede dos Poderes em Brasília.
A gente vai compreender o contexto histórico, também, em que aquela obra foi produzida. Quais os sentidos que estão presentes na representação das mulatas. Por que as mulatas? Em que momento histórico que aquilo foi produzido, como foi produzido.
Então, como pensa esse artista e qual o envolvimento dele com a cultura brasileira e com a cultura artística, enfim.
Isso reforça a ideia de a gente cada vez mais exigir o ensino da arte na escola, a compreensão desses códigos artísticos que estão presentes nas pinturas, nas esculturas, em várias linguagens da arte. Porque a arte vai dizer muito disso para a gente, quem nós somos, onde vivemos, o que produzimos, o que pensamos, como sentimos.
Tem uma série de questões que estão presentes na produção das obras de arte que, muitas vezes, são desconhecidas por boa parte da população, justamente, pela falta desse incentivo de vivenciar a produção cultural, de vivenciar a produção artística, de conhecer a arte brasileira, de conhecer a arte latino-americana e de se reconhecer também nessas obras, se sentir pertencente a tudo isso que é produzido pelos nossos artistas.
Até que ponto a falta de conhecimento da produção artística pode ter contribuído para que os vândalos não tenham poupado as obras de arte? Especialmente o trabalho do Di Cavalcanti, já que é considerado, talvez, o mais representativo dos modernistas brasileiros.
Muitas obras lá são do modernismo, que é um período bastante importante para a gente analisar, refletir sobre as mudanças que foram acontecendo no nosso País e como a arte participou dessas mudanças, influiu nessas mudanças, e como os artistas eram pertencentes a essa sociedade.
Por falar em sociedade, acho que uma das questões principais para a gente pensar é como que essas pessoas que invadiram, depredaram um patrimônio cultural, histórico, um patrimônio ali onde o espaço arquitetônico já é a obra, criada por Oscar Niemeyer.
Me preocupa bastante quando a gente vê essa situação. É lógico que aí tem uma reflexão. A gente não sabe o nível que essas pessoas tinham, esses invasores, esses golpistas, vândalos.
Que tipo de conhecimento eles tinham sobre aquilo que eles estavam depredando. Será que eles sabiam que eles estavam perfurando um Di Cavalcanti?
Será que eles sabiam que eles estavam destruindo uma escultura, como, por exemplo, “O Flautista”, do Bruno Giorgi, ou a escultura da bailarina do Brecheret?
Será que eles tinham conhecimento histórico e fizeram isso propositalmente ou não? Eles passaram por aquela sala sem ter a mínima noção e [pensaram que] aquilo eram apenas objetos quaisquer?
Eles não sabiam que ali tinha uma tela com uma importância histórica, com uma importância artística? Não sabiam que naquela sala tinha uma série de coisas para contar um pouco da nossa história, que contavam e, mais do que contar, para fazer a gente refletir sobre tudo aquilo?
O próprio Di Cavalcanti tinha uma relação dentro de sua produção de arte e de política muito presente, se a gente for parar realmente para pensar na ideia do ser político, a pessoa como um todo. E ele colocava isso nas suas obras.
O Brasil que nós tínhamos ali representado dentro da ideia do modernismo e como ele fazia essa relação, inclusive com essa ideia daqueles que não estavam visibilizados pela sociedade.
O discurso entabulado pela mídia, que acaba sendo dominante, estabelece contradição com o que se ensina na sala de aula?
É importante que as pessoas que escutam hoje as matérias, leem o que está sendo dito, compreendam que aquilo não era apenas uma pintura qualquer na parede, que a pintura tem um sentido e que outras pinturas também têm os seus sentidos. É importante a gente ler essas pinturas, dialogar com elas, saber as histórias e assim por diante.
Por isso a minha fala é mais no sentido de reforçar a necessidade de uma formação artística e estética das pessoas desde muito pequenas, desde a Educação Infantil até a formação universitária, para estar acompanhando esse processo, construindo esse processo. Porque o conhecimento artístico é construído, é uma alfabetização visual.
A gente precisa conhecer isso para a gente gostar, para saber que existe e o valor que tem. A arte nos sensibiliza, nos mostra e nos faz sentir a nossa humanidade, a nossa sensibilidade, a nossa relação com o outro e com a gente.
A arte tem essa relação, o eu e o outro e o nós. Ela nos ajuda nesse relacionamento.
É importante incentivarmos a visitação nos nossos museus, nos espaços culturais da cidade, conhecer os artistas, suas temáticas, participar da diversidade cultural, conhecer as diferentes linguagens artísticas, isso é formação estética e é fundamental para conhecermos nosso patrimônio.
Me parece que a questão da arte precisaria de uma estratégia de choque, não?
A minha vontade era pegar todos os alunos que eu tenho nesse momento, colocar sentados em frente à obra que foi esfaqueada, agredida, para a gente pensar esse País.
Pensar enquanto povo brasileiro nas nossas diferenças, em como as minorias são pensadas nesse País, como não são aceitas, e conversar sobre a necessidade de um ensino de arte antirracista, que mostre que as mulheres estão presentes na história da arte, que a arte não foi feita só para elite, mas que a arte é um conhecimento que precisa estar na escola e para todos.
Aula de arte não é aula de enfeite, é aula para a gente desenvolver pensamento crítico, desenvolver a produção artística brasileira e mundial, e assim por diante.
Esse é o momento de a gente falar no Di Cavalcanti, como é o momento de a gente falar sempre e cada vez mais sobre os artistas brasileiros, sobre os artistas que nós temos em Mato Grosso do Sul, e fazer essa aproximação. A arte não pode se distanciar das pessoas.