"Inaceitável." O primeiro comentário vindo do Palácio do Eliseu, sede do governo francês, parecia esperado por Ursula von der Leyen. Em Montevidéu, nesta sexta-feira (6), a presidente da Comissão Europeia dedicou parte do seu discurso para se dirigir ao seu lado do Atlântico. Após listar uma série de benefícios que o acordo UE-Mercosul pode trazer para os negócios do continente, ela declarou que "esta é a realidade". "Quatro bilhões a menos em tarifas para as companhias europeias, abertura de mercado, oportunidades e empregos."
A resposta francesa foi imediata. "A Comissão conclui a negociação com o Mercosul, que é sua responsabilidade, mas o acordo não está assinado nem ratificado. Não é assim que a história acaba", declarou Sophie Primas, ministra de Comércio Exterior demissionária. "O acordo não entrou em vigor."
De fato não entrou. Segundo a Comissão, o processo continua agora com a tradução do tratado assinado para as 24 línguas oficiais do bloco e a análise dos aspectos legais. Se a parte comercial for separada dos demais tópicos do documento, ela não precisará de aprovação nos Parlamentos dos países-membros, algo que de fato nunca aconteceria.
Vários países do bloco, em maior ou menor grau, se opõem ao tratado. França, Polônia, que também repetiu suas críticas nesta sexta-feira, Áustria e Holanda ganharam nas últimas horas adesão parcial da Itália. Consolidado, o grupo teria forças para barrar o processo também no caminho simplificado: com no mínimo quatro países e representando ao menos 35% da população, uma dissidência pode vetar o assunto no Conselho Europeu, também chamado de Conselho de Ministros.
Na outra instância necessária à aprovação, o Parlamento Europeu, em tese o acordo seria aprovado com mais facilidade.
Se o acordo é um "blockbuster", como descreveu o Financial Times, ele também "compromete apenas a Comissão Europeia", ponderou o Le Monde, reproduzindo outra declaração do combalido governo Emmanuel Macron. Esses e outros argumentos farão parte de intensa disputa nos próximos meses.
A pressa de Von der Leyen para fechar o documento possível com os sul-americanos vinha sendo criticada por alguns setores econômicos e países. Para a França, maior produtor agrícola da Europa e mais suscetível às manifestações de fazendeiros, a Comissão extrapolou seu papel.
Em entrevista coletiva, Olof Gill, porta-voz da entidade para Agricultura e Comércio, afirmou, horas antes do anúncio do acordo, que Von der Leyen tinha mandato para fazê-lo. "Todos os tratados carregam um drama político. Isso é comum nesse tipo de negociação. Mas posso garantir que a Comissão cumpriu plenamente seu papel e no prazo."
Gill afirmou que a decisão de dividir o acordo, se ocorresse, também caberia à Comissão e que isso é uma praxe antiga. "Os países-membros decidiram que esse tipo de negociação seria feito coletivamente através da Comissão. Não há novidade aqui."
Von der Leyen dedicou parte de seu discurso também aos fazendeiros europeus, afirmando que "seu modo de vida será respeitado". "Estamos trabalhando nisso", completou, dando a entender que pode aumentar as salvaguardas à atividade na Europa. O setor já é o que consome a maior parte dos subsídios do continente.
Presidente do principal sindicato ruralista da Itália, Massimiliano Giansanti afirmou que a Comissão "envia uma mensagem muito preocupante a milhões de agricultores e pecuaristas em toda a Europa".
"Há anos manifestamos nossa oposição categórica a este acordo comercial ultrapassado e problemático, que só agravará a pressão econômica suportada por quem lida constantemente com preços elevados dos insumos e condições meteorológicas difíceis."
Agricultores franceses, que já haviam marcado para segunda-feira (9) uma nova rodada de protestos, declararam que os atos ficarão "mais duros". As manifestações devem ocorrer também em outros países. O movimento encontra eco também nos partidos de direita e extrema direita em ascensão no continente, que usam as regulações ambientais como plataforma eleitoral.
Seriam excessivas, punindo em geral quem tem menos recursos, como os fazendeiros.
A questão agrícola seria também o motivo de a Itália sinalizar que pode compor a dissidência com a França. A premiê, Giorgia Meloni, encara porém um momento de crise econômica em seu país, que não lhe permitirá ignorar argumentos como bilhões a mais em investimentos.
Maior exportadora do continente, a Alemanha festeja o acordo e é a grande aliada de Von der Leyen na disputa. A "maior zona de livre comércio do mundo", como descreveu em título o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, significa mais empregos _o comércio com o Mercosul já sustenta 855 mil postos de trabalho na Europa.
De acordo com a federação de indústrias alemãs, o tratado tem potencial de fazer o PIB do país crescer 0,15%, algo como 6 bilhões de euros, ganho considerável para uma economia estagnada há dois anos, em disputa comercial com a China e sob a ameaça do protecionismo da segunda gestão Donald Trump.
O acordo preocupa também ambientalistas. Depois que a União Europeia adiou por um ano sua lei antidesmatamento, o tratado como os países do Mercosul e sua agricultura intensiva seria um novo indicativo de que o bloco estaria trocando sua liderança global no setor por ganhos comerciais.
*Informações da Folhapress