A economista disse ao Correio do Estado que a implementação das reformas fiscal, tributária e administrativa no Brasil é essencial, mas a divisão política dificulta o debate
A renomada doutora em Economia Zeina Latif concedeu entrevista ao Correio do Estado em sua passagem recente por Campo Grande. Durante a conversa, a economista com vasta experiência no mercado financeiro falou sobre temas importantes da agenda econômica brasileira.
Quando o tema é economia, Zeina Latif é frequentemente mencionada por suas análises dos cenários doméstico e internacional.
Entre os pontos citados pela consultora estão a polarização política e sua influência na agenda econômica, a reforma tributária, os investimentos e os incentivos fiscais. Confira a seguir.
Como está a questão do mercado financeiro, da Faria Lima? Você acha que eles cobram do Congresso a mesma transparência que cobram do Executivo na questão dos cortes de gastos? Existe essa cobrança de responsabilidade fiscal também por parte do Congresso? O mercado está sabendo compartilhar essa responsabilidade?
Eu não consigo falar pelo mercado, não estou mais na linha de frente, mas pelo que eu consigo enxergar, tem muita interlocução do Congresso com os players de mercado. Então, a gente vê muitas vezes políticos, senadores, deputados, indo para São Paulo falar com a Faria Lima e tentar, enfim, tem essa interlocução. Então, mudou, mas o fato é que a gente tem regras que acabam eximindo, isentando os demais Poderes. Porque é assim, você tem regras fiscais, tem de responsabilidade e tal.
O Congresso ou o próprio Judiciário muitas vezes criam despesas, só que não cumprir a lei de responsabilidade cai naquele colo do Executivo. É um Executivo que é punido diante disso. Temos regras que a meta é do Executivo, mas todo mundo, de alguma forma, pode contribuir para o gasto e não é responsabilizado por isso. Além dessa questão do Congresso com mais poder, hoje, não tem mais a mesma margem para cortar a despesa discricionária como no passado. Então, por exemplo, você pega o início do governo Lula, lá atrás, gasto obrigatório que, se não me falha a memória, era algo como 75% do total, hoje é 93%.
Concordo que o Congresso está faltando uma maior responsabilidade, um maior compromisso para o País. E isso tem a ver, claro, com o nosso desenho político. Você tem um sistema multipartidário, partidos que são sem uma linha programática clara, é muito no jogo da política apenas, buscando atender os seus currais eleitorais, e não com uma visão de País.
O que é necessário fazer para que as reformas funcionem?
Primeiro você precisa ter um governo forte para passar essas agendas. A gente nunca conseguiu algo muito ambicioso nessa linha. Precisa governo forte para fazer as engrenagens desse tal presidencialismo de coalizão funcionar. Quer dizer, que as moedas de troca de fato se convertam em uma agenda de País. E aí é difícil ser otimista. Aqui é difícil.
Mas um governo forte se faz com sociedades dividida? É difícil também?
A minha visão é que a polarização é um veneno para a discussão de agenda econômica. Isso eu vi com o Bolsonaro e vejo com o Lula, com os dois. Se tal proposta vem de tal presidente, não deve ser coisa boa. Então, a sociedade trava, o Congresso também não quer melindrar ninguém. Temas polêmicos em uma sociedade muito polarizada é mais difícil você fazer ajuste.
Já fazendo a ponte para Mato Grosso do Sul, hoje, nossos maiores gargalos estão ligados à infraestrutura de transporte, a rodovias e ferrovias que necessitam de investimentos bilionários. Até que ponto o setor privado pode pôr dinheiro para deslanchar investimento logístico?
Esse ponto é importante, porque quando a gente olha as experiências de países com sucesso, onde eles se destacam é o ganho de produtividade. O mesmo ganho de produtividade, muitas vezes, é contrapartida também de investimentos. E o fato é que a nossa taxa de investimento, quer dizer, o problema nosso não é só a baixa produtividade, a gente tem uma taxa de investimento muito baixa, comparativamente a outros países. E é isso, a insegurança jurídica é o principal fator, porque tem uma demanda enorme. E se a demanda é enorme, quer dizer que a taxa de retorno deve ser boa, de repente compensa a própria taxa de juros do Banco Central.
E por que não deslancha? Não deslancha porque no Brasil você nunca tem certeza do investimento que você vai fazer, se não vai ter um problema lá na frente, no processo de implementação, depois no funcionamento e tal. O exemplo que os economistas gostam de citar era quando o governador lá do Rio de Janeiro mandou quebrar as praças de pedágio. Então, é um País que essa questão da insegurança jurídica é importante, principalmente para a infraestrutura.
Claro que a solução para isso não é que você vai lá, faz uma PEC e está resolvido, estamos falando em reforçar o diálogo com o órgão de controle, com o judiciário, que precisa entender se tem consequências nas suas decisões, o impacto econômico das suas decisões. Então, não é uma medida que você vai lá, aprova no Congresso e tudo está certo.
O que eu entendo é o seguinte: essa é uma agenda que tem crescido, essa discussão de ter que ter regras do jogo mais estáveis e mais claras para o setor privado investir mais em infraestrutura. Isso está crescendo muito e é essencial. Enquanto a gente só fica discutindo por inflação, por juros, você perde a oportunidade de avançar em uma instituição como essa. Mas, não é virada de chave. Tem muito investimento contratado por causa de concessões, por causa de marcos regulatórios e tal, mas o debate é como acelerar.
Então imagina, se você consegue ir destravando isso, o ganho de produtividade que você vai ter no País é muito forte. Abrir ou reforçar uma infraestrutura em uma área que está superisolada, o ganho de produtividade é enorme. Então, eu acho que dá para ter uma visão mais construtiva de Brasil. Não que eu acredite que a gente vai dar grandes saltos no atual governo. Ideologicamente, é uma visão muito intervencionista.
Os incentivos fiscais hoje são um problema para a economia como um todo?
O País, do ponto de vista de funcionamento das instituições, tem muito ainda a avançar. O cálculo do Insper é que o contencioso tributário no Brasil está, pelo menos, equivalente, somando tudo, a 75% do PIB [Produto Interno Bruto]. Não tem nada, nem longe disso, no mundo todo. Nos outros países, é de 0,3%, é menos de 1%. Tudo na escala no Brasil é gigantesca.
Como é uma sociedade muito complexa, você não vai conseguir acabar da noite para o dia. Aquele discurso do Paulo Guedes, vou dar uma facada no sistema S, vou acabar com não sei o quê, não vai. Não vai porque decisões foram tomadas em cima disso. Você pode, de uma forma agregada, fazendo reformas para vários grupos e, assim, todo mundo sentindo que vai ter que participar desse esforço.
No fim, se a gente for pensar, ainda que a reforma da Previdência tenha sido incompleta, e nem acho que conseguiria ser completa, porque não é brincadeira, mas era uma sensação assim: olha, todo mundo, com exceção, uns ou outros, no caso dos militares, ficaram de fora, os estados e os municípios ficaram de fora, mas enfim, se você for pensar, todo mundo, de alguma forma, tendo que abrir mão. De novo, não foi o que se esperava, mas já foi um passo importante. Vale para a [reforma] tributária também.
Você acha que a reforma tributária deve reduzir aquele contencioso tributário de 75%?
A reforma deve reduzir e em algumas coisas aumentar, mas para o conjunto da obra, vai diminuir. A questão é que pode ser que diminua muito menos do que a gente gostaria. Porque cada vez que você faz uma regra especial, vai ter algum grupo que vai questionar aquela regra, e aí vem o contencioso. E foi piorando, saiu do governo, foi para a Câmara, já piorou. Foi para o Senado, piorou. Daí, na segunda rodada, piorou de novo.
O Brasil, assim, e aí, é que esse é um exemplo que governo fraco de sociedade polarizada atrapalhou. Eu vou ser sincera, quando começou a tramitação da reforma tributária, lembra que, assim, a Simone Tebet falava, “é a nossa bala de prata”?Não tem nenhuma outra grande reforma vindo no atual governo.
Há um temor de desindustrialização de estados periféricos com o fim do incentivo fiscal. Como você vê essa mudança na dinâmica do contrato, esse fundo de compensação? Existe mesmo esse risco? E como o mercado se comporta com isso?
A guerra fiscal dos estados, em um primeiro momento, ajudou a desconcentrar e tal. Mas foi ficando muito claro para os governadores que o nível de renúncia fiscal estava ficando absurdo. Então, teve um momento ali que se criou um grande consenso entre os governadores e os secretários de fazenda de que era necessário fazer a reforma e estancar aquela fiscal. Porque realmente ela parou de cumprir seu papel, vamos dizer assim, e ela estava gerando uma renúncia tributária muito forte com uma marca que só faz crescer.
E sem contar que o ICMS foi se tornando um imposto obsoleto, que não dá mais conta da mudança da estrutura produtiva do País, que cresce no Brasil e no mundo no setor de serviços. Hoje, o que a gente tem de manufatura embutida naquilo que a gente consome é muito pouco. O grosso são os serviços.
Acho que, para aqueles estados que conseguiram mudar de patamar, que utilizaram o ganho que tiveram de arrecadação com a atração dessas empresas e sofisticaram os seus setores e tal, eu não vejo por que ter desindustrialização. Por exemplo, aqui, eu não vejo por que, porque você tem ali uma empresa que já tem todo o seu capital organizacional ali.
Eu acho que as mudanças, elas vão ser para aqueles estados que não conseguiram trazer nada, entende? E essa é a principal concorrência. Olha, eu estou indo para um estado em que vou ter mão de obra qualificada, infraestrutura, marcos regulatórios mais previsíveis, baixa insegurança jurídica. Então essa é a principal concorrência, não pode ser por causa do tributo. Então, assim, do ponto de vista dos motores de crescimento do País, tem excelentes notícias, mesmo que a gente não colhe esses frutos rapidamente.
A reforma tributária traz estímulo para a indústria?
Depende do estado, depende do que produz, eu estou falando de uma forma genérica. O efeito multiplicador na economia é forte, porque a indústria tem um peso muito importante. O efeito multiplicador da indústria é muito grande. Então, por exemplo, parte do setor de serviços está atrás porque é justamente provedores de serviços para a indústria.
A indústria, ela puxa muitos setores. O agro, apesar de ter sido crucial para o Brasil superar aquele problema que a gente chama de vulnerabilidade externa, o Brasil se inseriu, exporta, ganha as reservas e é essencial para muitas áreas do País, não é exatamente o agro sozinho um puxador de crescimento. A gente realmente precisa da indústria.
Então, você ter a commodity processada, porque você tem um ambiente de negócios mais razoável, com um sistema tributário mais racional, acho que é um salto que a gente pode ter. Eu realmente acho que a gente pode ter bons efeitos. Claro que não é uma virada de chave. A reforma não sai do jeito que a gente quer, mas, pelo menos, vai indo, vai caminhando.
Perfil - Zeina Abdel Latif
Nascida em Campinas (SP), no dia 13 de outubro de 1967. Bacharel, mestre e doutora em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), foi professora de Economia na Universidade Mackenzie, em São Paulo, e pesquisadora da USP no Instituto de Pesquisas Econômicas. Lecionou Macroeconomia no MBA do Ibmec e atuou por um grande período no mercado financeiro. Sua trajetória começou como economista sênior na Tendências Consultoria Integrada.
Em 2002, assumiu a posição de economista-chefe no Banco Bilbao Vizcaya e, um ano depois, tornou-se economista-chefe do HSBC Asset Management, cargo que ocupou até 2005. Entre 2005 e 2007, exerceu a função de economista-chefe no ABN-Amro Bank. Em 2008, assumiu o mesmo cargo no ING Bank no Brasil, permanecendo até 2010, quando se transferiu para o Royal Bank of Scotland na América Latina, onde atuou como economista sênior.
Em 2014, assumiu a posição de economista-chefe na XP Investimentos, cargo que ocupou até 2020. Após deixar a corretora, Zeina concentrou seus esforços na Gibraltar, sua empresa de consultoria.
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