ACONTECEU EM 1975...
"Gasolina barata e de alta octanagem: vantagens para Bolívia, prejuízos em Corumbá."
Assim, de maneira direta, o Correio do Estado abriu a sua página 3 do dia 22 de outubro de 1975. Em reportagem especial de página inteira, o repórter Montezuma Cruz foi até Corumbá mostrar que no então sul de Mato Grosso, a solução para a alta nos preços de gasolina e outros derivados de petróleo era ir abastecer na Bolívia.
Logo nas primeiras linhas, a reportagem evidencia os benefícios aos motoristas da época: enquanto o preço do litro do combustível beirava os 3,38 cruzeiros nos postos corumbaenses (R$ 0,53 em valores atualizados), no país vizinho o valor pela mesma quantidade chegava a 1,10 cruzeiro (R$ 0,17).
Tá leitor, eu sei que você está aí, "mas Memória, por que ir até a Bolívia para abastecer"?
Como já dissemos anteriromente, economia exige contexto. E a função desse escriba é explicar tudo direitinho para você. Vamos voltar no tempo para falar da famigerada Crise do Petróleo. Se ajeite no sofá, cadeira ou banco do ônibus e embarque com a gente nessa viagem. Eu prometo que não vai ser chato.
PRIMAVERA ÁRABE: O OURO NEGRO NO QUINTAL DE CASA
A região petrolífera do Golfo Pérsico foi descoberta em 1908, no Irã. A partir daí, toda a região começou a ser visada estrategicamente e explorada. Em 1960, na cidade de Bagdá, no Iraque, os cinco principais produtores de petróleo do mundo na época (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela) fundaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. A criação da OPEP, sigla que pautou muitos jornais por três décadas, foi uma forma de reivindicar perante uma política de achatamento de preços praticada pelo cartel das grandes empresas petroleiras ocidentais – as chamadas "sete irmãs".
Deu certo, muito certo. Primeiro porque cientistas descobriram o que hoje parece óbvio: petróleo é fonte de energia não renovável. Ou seja, limitado. E tudo que se torna exclusivo, deixa de ter preço baixo. A criação da OPEP foi além de fortalecer os governos árabes frente ao explorador europeu. Tratou de ditar as regras do jogo industrial, impondo de acordo com suas vontades o mercado e as condições, como preço por barril e condições de venda.
É nesse cenário que surge a segunda condição. Independente financeiramente e adminsitrativamente, os países do Oriente Médio desencandearam uma série de conflitos armados, guerras que tinham como alvo o 'malvado favorito' da primeira Primavera Árabe, Israel, considerado um intruso na região por conta da quesão com a Palestina.
Foi uma dessas guerras que gerou a segunda das quatro crises do petróleo, a que nos interessa, em 1973. Entre 6 e 26 de outubro de 1973, uma coalizão de estados árabes liderados por Egipto e Síria invadiram Israel, na chamada Guerra do Yom Kippur. O ataque surpresa, realizado durante feriado judaíco de mesmo nome, só foi interrompido com auxílio de tropas dos EUA, o que revoltou os árabes que descontaram inflacionando o preço do petróleo.
Entre novembro daquele ano e abril de 1974, o preço do barril saltou primeiro de 3 a 12 dólares. A especulação financeira fez com que o preço chegasse a 20 dólares. O impacto foi fulminante. A indústria automobilística e de derivados retraiu, provocando longa recessão nos EUA e Europa, desestabilizando a economia mundial.
MILAGRE ECONÔMICO, MAS NEM TÃO MILAGROSO ASSIM...
O drama para os brasileiros demorou, mas aconteceu com força no fim daquele 1974.
Com uma população em êxtase pelo chamado Milagre Ecônomico da Ditadura Militar, período entre 1968 e 1973 em que a economia brasileira cresceu até 14%, com queda de 10,1% da inflação no período, as classes baixas e média foram às compras. E além dos eletrodomésticos da moda à época, como a sonhada TV a cores, a geladeira duplex e o fogão de seis bocas, o automóvel entrou de vez na vida cotidiana.
O eldorado soava extremamente positivo aos militares, que incentivaram esse padrão de vida, sucateando outros meios de transporte, como ferrovias e hidrovias, e privilegiando grandes obras rodoviárias e incentivo fiscais às montadoras. Eram os tempos da Transamazônica, da Ponte Rio-Niterói. E a população vestiu a camisa do regime. Até que a batalha em solo israelense começou.
O Brasil não foi diretamente atingido pela decisão da Opep, o bom relacionamento com as nações produtoras garantiu o fornecimento. No entanto, o aumento das importações afetou nossa balança comercial. O crescimento retraiu. Então, para dar fôlego ao milagre econômico, o governo passou a tomar mais empréstimos no exterior. A dívida externa do País saltou de US$ 17,2 bilhões em 1974 para US$ 43,5 bilhões em 1978.
A alta do barril do petróleo explodiu a ilusão econômica. Já em dois anos, o Brasil viu aumento de preços consideráveis nos bens de consumo, eletrodomésticos e, claro, carros. A alta no custo padrão de vida, que o regime quis esconder com a censura dos números oficiais, não demoraria a chegar nas bombas dos postos de gasolina.
ENFIM, CORUMBÁ...
É nesse cenário que voltamos à nossa reportagem leitor. No segundo semestre de 1975, o País já vivia alta no combustível. Postos fechavam por falta de abastecimento. E a solução no então sul de Mato grosso era ir aos países vizinhos, principalmente a Bolívia, onde o abastecimento era feito por empresas estatais.
Na reportagem (que você pode ler na íntegra abaixo), relatos de como funcionava a facilidade de quem é vizinho de outro país. "Há alguns meses atrás, jogadores de futebol de Dourados chegaram aqui no posto e colcoaram só 20 cruzeiros de gasolina no tanque. Eu perguntei porque eles abasteceram tão pouco. Os homens me responderam que aquela gasolina era só para chegar até a fronteira com a Bolívia", assegurou o dono de um posto de combustível na cidade pantaneira.
O relato reflete com perfeição a angústica local. Segundo o texto, os nove postos de gasolina da cidade viviam dura situação. Alguns fechavam aos domingos para economizar com funcionários. Outros abriam mão da garantia para aceitarem fazer fiado aos fregueses. Valia tudo para tirar a mangueira da bomba. Pudera, em um final de semana, apenas 200 litros eram vendidos na ocasião.
Um contraste e tanto com o lado boliviano. A menos de 22 quilômetros da fronteira se encontrava um posto da Yacimientos Petrolíferos Piscales Bolivianos, a empresa estatal, em Puerto Suarez. Felizes, os frentistas enchiam a boca para relatar ganhos consideráveis com a média de 25 mil litros diários de combustíveis vendidos. As filas, constantes, iam das 6h às 19h, atraindo não só os corumbaenses, mas trambém gente de todo o Estado, além de São Paulo, Goiás, Paraná e até Minas Gerais.
A estimativa era de que mediante a crise, 80% da população de Corumbá com carro atravessasse a fronteira para abastecer na Bolívia.
Não era pouco. E medidas precisaram ser tomadas. Até por conta de um problema de, digamos, honestidade: por conta da falta de fornecimento, muitos dos postos brasileiros não tinham pudor em colocar água na gasolina, fazendo o produto render pouco ao consumidor, mas muito ao bolso do comerciante.
De acordo com a reportagem. houvberam apreensões de perueiros em Campo Grande que estacionavam uma kombi em via pública para oferecer a gasolina boliviana nas ruas. A procura era além do preço ou da falta de estoque: a fama que se espalhou é que o combustível boliviano durava mais por conta da octanagem. O termo, estranho aos ouvidos, diz sentido à sua combustão . Aos sulistão do entçao Mato Grosso unificado, o líquido do país vizinho durava mais para evaporar com o forte calor habitual.
Seja como for, veio a divisão de Mato Grosso e os sul-mato-grossenses mantiveram quase que um ritual: há problema de abastecimento de combustíveis, a solução é atravessar a fronteira. Evidente que com o surgimento de outras fontes, como o etanol, a disputa se tornou menos feroz, até os estoques são mais amplos. Existe um centro de distribuição da Petrobras na Capital, na região oeste. Algo impensável para a interiorana cidade daqueles tempos.
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