A notícia ecoa com a força de um alívio longamente esperado: o Brasil, mais uma vez, saiu do Mapa da Fome da ONU. É sinal da resiliência brasileira e da capacidade do nosso governo, quando há interesse.
Assistir a insegurança alimentar grave recuar tão expressivamente em um tempo tão curto é a prova de que existe, sim, um caminho. Mas essa vitória também é profundamente agridoce. Aos que acompanharam a política brasileira nos últimos anos, pode até gerar confusão. “Já não havíamos saído em 2014? O que nos levou a voltar? Como saímos novamente em poucos anos?” Entramos, saímos e, perigosamente, podemos entrar de novo, a depender da permanência ou não de políticas públicas estruturadas. Afinal, a fome no Brasil não é um acidente, é uma escolha política. A celebração dessa semana precisa vir, portanto, acompanhada de uma memória afiada.
A primeira vez que saímos do Mapa da Fome, em 2014, não foi milagre, não foi da noite para o dia, foi estratégia. Durante praticamente duas décadas, diversas políticas públicas foram desenvolvidas e sistematicamente aplicadas para alcançarmos este marco histórico antes da data-limite dos chamados Objetivos do Desenvolvimento do Milênio da ONU. A conquista foi fruto de um projeto de sociedade baseado em políticas públicas consistentes, implementadas e mantidas pelos governos de Lula e Dilma. Ao analisar os planos da época, é possível observar uma arquitetura robusta que integrava o governo, a sociedade civil e as políticas públicas: o Bolsa Família garantia acesso à renda para comprar comida; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) conectava os agricultores familiares a quem mais precisava, como a merenda escolar; o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), composto por dois terços de participantes da sociedade civil, garantia que as políticas fossem moldadas por quem vive a realidade da fome, e não apenas por quem está em Brasília; e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) articulava e coordenava a implementação dessas políticas.
Então, o que deu errado? A fome não foi resultado apenas da pandemia ou do acaso. Ela foi um projeto. A análise da última década é clara: a partir de 2016, essa arquitetura foi sistematicamente desmantelada. O teto de gastos asfixiou o Orçamento, programas foram enfraquecidos e, como ato simbólico e político desse desmantelamento, o Consea foi extinto em 2019. Retiraram a participação popular, cortaram os recursos e o resultado não tinha como ser outro: 33 milhões de brasileiros mergulhados na fome em 2022. A fome no Brasil, potência agrotecnológica de terras férteis, é uma escolha política, portanto.
A ótima notícia revelada pela ONU é a prova inversa desta mesma lógica. Se o desmonte causa a fome, a reconstrução combate. Esse avanço é fruto de um projeto de sociedade baseado em políticas públicas consistentes, implementadas pelo governo Lula 3. A volta do Consea, a reformulação do Bolsa Família, o restabelecimento de ministérios especializados, o apoio à agricultura familiar, o desenvolvimento do plano Brasil Sem Fome e do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2025-2027), a redução da pobreza e da desigualdade, a queda do desemprego, o aumento real do salário mínimo e a reativação do PAA, todos são ferramentas com impacto direto nos números que agora comemoramos. As políticas que nos tiraram do mapa antes funcionaram de novo, porque elas são eficazes, bem desenhadas e baseadas em evidências. Essas medidas contribuíram para que o País reduzisse a insegurança alimentar grave para menos de 2,5% da população, critério estabelecido pela FAO para que um país seja excluído do Mapa da Fome.
Além das ações internas, o governo de Lula tem buscado internacionalizar essa agenda, o que já foi feito em seus mandatos anteriores e que fez do combate à fome um precioso ativo da nossa política externa. Durante a presidência brasileira no G20 em 2024, por exemplo, foi proposta a criação de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, lançada oficialmente em novembro do ano passado. Em seu discurso de abertura da cúpula, Lula afirmou: “A fome é produto de decisões políticas que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade. Compete aos que estão aqui em volta desta mesa a inadiável tarefa de acabar com essa chaga que envergonha a humanidade”.
Portanto, devemos celebrar, mas não podemos ser ingênuos, claro. A porta giratória, que nos tirou em 2014 e depois nos fez voltar ao Mapa da Fome em 2022, só vai parar de girar quando a luta contra a fome for blindada como uma política de Estado permanente, isto é, como uma prioridade para todos os governos e amantes da democracia. A conquista desta semana é imensa, mas não necessariamente a batalha está ganha.
Ela nos mostra o caminho, mas também nos lembra do abismo do qual acabamos de sair. A vigilância da sociedade civil, da imprensa, da academia e de cada cidadão cobrando a permanência e o contínuo fortalecimento dessas políticas públicas é a única garantia de que chegaremos a um Brasil completamente sem fome. Que desta vez a porta do Mapa da Fome seja apenas de saída e que não se abra nunca mais.



