Extraviei a caneta. Achei um toco de lápis. Como num relâmpago, estou imitando Manoel de Barros. Por um bom tempo, é desse modo que ele não apressava as palavras cair da cabeça para o papel vazio. Acho que esse era o segredo de brincar com palavras. Às três e meia da madrugada, acordo e pouco depois ouço o barulho de água correndo, apressada. Até estranhei num primeiro momento, pois pode ser confundido com pneu deslizando no asfalto, mas logo soube que era no Córrego Prosa, na Ricardo Brandão. Pode ser uma raridade, mas, vez ou outra, Campo Grande nos surpreende. Se quiser sentir os respingos de cachoeira, é só ir subindo até a Praça das Águas. Nela, os contornos do Prosa pronto para barulhar sua pressa cutuca afetos escondidos na memória. Ainda deve ser ótimo entrar nas águas falantes do Prosa ali. Penso que tem tudo a ver com conversa de riacho banhando árvores em um diálogo milenar que hoje estamos nos afastando de gostar. Logo à sua volta, outros arranjos sofisticados provocam a atenção e até mesmo o estilo de vida. Não sei se o Prosa parou no tempo. Acho que não. Fomos nós que nos distanciamos, criando um tempo e um espaço diferente.
Campo Grande é isso. Um vasto campo, bem grande, habitado por humanos de todas as partes do mundo, em uma diversidade étnica suficiente para chamarmos de “cidade democrática”. Seus habitantes aprenderam a pressa diferentes das águas do Prosa querendo encontrar o Segredo para se juntarem. Aí, casados geram o Anhanduizinho. Só o sofisticado olhar campestre do Seu Lúdio “Martins Coelho” poderia ter sonhado um Parque das Nações Indígenas. Mesmo adversário político, Pedrossian adotou a ideia futurista de prestar homenagem a nações indígenas, bichos naturais da terra, águas e árvores, como querendo não apressar a modernidade tardia. Lá, podemos reencontrar nossa porção meio selvagem, trajado de urbanoide. É um paradoxo saudável, que traz uma consciência de respeito. Por isso é um templo onde se caminha, orando ou não, em busca do diálogo comprometido entre homem e natureza. O mais chique é que fica no centro de Campo Grande.
Nelsinho Trad, cria da terra também e deve ser por isso, enquanto prefeito, sofistica ainda mais esta relação, filtrando com maestria os apelos da modernidade e da nossa tradição campestre. Penso que tudo isso agarrou mentes e mãos dos nossos artistas e suas artes, fazendo um eco cultural nos usos e costumes com o movimento, a cor, o sabor e o som do respeito por Campo Grande. Viver aqui no sentido existencial é fácil e prazeroso por causa do encontro fácil do passado de mãos com o presente sem dificuldades neuróticas. Os anônimos nossos de cada dia, em seu tímido silêncio, fabricaram essa atmosfera acolhedora. Acho que é o que mais atrai as pessoas para cá, permitindo expressões e desejos daqueles que buscam cordialidade de um lugar para preservar suas pretensões mais humanas. Que o digam os japoneses, os italianos, portugueses, libaneses, sírios etc., que nos ensinaram com seu trabalho e seus sabores o tanto que nos ajuda a crescer vivendo juntos e misturados, sem o monopólio da verdade cultural.
Só temos de pensar seriamente sobre o tamanho que podemos ter sem perder as conquistas visíveis e invisíveis que aplacam a sede de quem quer apenas viver na cidade coração da América.