O Supremo Tribunal Federal (STF) julga, no Tema nº 1.300, uma das questões mais sensíveis do sistema previdenciário brasileiro: a forma de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente decorrente de doença comum após a reforma da Previdência de 2019.
A decisão não envolve apenas porcentuais ou fórmulas. Trata da essência da proteção social, da dignidade de quem, ao adoecer gravemente, tem a vida virada do avesso.
A Emenda Constitucional nº 103 produziu um paradoxo que desafia a lógica mais elementar: o benefício mais grave, a aposentadoria por incapacidade permanente, passou a ser inferior ao benefício temporário, o auxílio-doença.
Enquanto este corresponde a 91% do salário de benefício, a aposentadoria por incapacidade decorrente de doença comum parte de 60%, com pequenos acréscimos por tempo de contribuição. Quanto mais severa e irreversível a condição de saúde, menor tende a ser o valor recebido. A matemática não é apenas injusta, ela afronta o bom senso.
Basta imaginar João, diagnosticado com Alzheimer após 20 anos de contribuição: recebe apenas 60% do salário de benefício. Já José, que fratura dois dedos e se afasta temporariamente, recebe 91% pelo auxílio-doença. José se recupera, João jamais voltará ao trabalho.
Como justificar que o Estado pague mais a quem voltará à plena capacidade do que a quem enfrenta uma incapacidade definitiva?
A distorção se torna ainda mais evidente quando comparamos a incapacidade permanente comum com a decorrente de acidente de trabalho. Mário, que sofreu um acidente laboral, terá direito a 100% do salário de benefício, proteção correta e constitucional, diante do risco inerente à atividade profissional.
Mas qual a diferença real entre o estado de saúde de Mário e o de João? Nenhuma. Ambos jamais retornarão ao mercado. O que muda é apenas a origem da incapacidade, não suas consequências.
Pense-se em algo ainda mais dramático: uma pessoa com câncer terminal que contribuiu por 20 anos receberá aposentadoria proporcional; já um trabalhador que atuou 10 anos em posto de gasolina e desenvolveu câncer comprovadamente decorrente da exposição ao benzeno receberá benefício integral.
Quando a doença destrói a autonomia, o ordenamento exige igualdade material, não distinções artificiais.
O próprio STF já afirmou que discriminações internas no sistema previdenciário violam a lógica da proteção social. Nas ADIs nº 2.110 e nº 2.111, a Corte reconheceu que não há justificativa para diferenças de tratamento entre contribuintes obrigatórias, facultativas ou autônomas para acesso ao salário-maternidade.
A regra é simples e direta: se a contingência é a mesma, a proteção deve ser igual. Essa é exatamente a racionalidade que se aplica ao Tema nº 1.300.Doença grave incapacitante é doença grave incapacitante, seja de origem comum, seja laboral.
O impacto humano, econômico e familiar é idêntico. Não há razão constitucional para que o Estado proteja menos quem mais precisa.
O País acompanha o julgamento com expectativa legítima. Não se trata de ampliar gastos sem critério, mas de corrigir uma deformidade que afronta a própria lógica do sistema previdenciário.
A aposentadoria por incapacidade permanente por doença comum precisa recuperar sua função: assegurar proteção integral a quem não pode trabalhar nem cuidar de si. Pagar menos para quem está mais doente não é apenas um erro de cálculo. É um erro moral.
O Supremo tem agora a oportunidade de restabelecer coerência, humanidade e equilíbrio. A sociedade espera, e com razão, que a Corte reafirme os pilares constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da isonomia.
O Tema nº 1.300 não é apenas uma disputa sobre porcentuais. É uma escolha civilizatória.


