Nos últimos dias, li com atenção o artigo do professor Arthur M. Ferreira Neto, publicado em 24 de outubro de 2025, intitulado “Modulação no caso Difal e o erro do STF ao privilegiar a inadimplência”.
É uma leitura obrigatória para quem se preocupa com o sentido de justiça nas decisões tributárias, especialmente quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decide modular efeitos de seus próprios julgamentos.
Arthur expõe com precisão um fenômeno que se repete: a modulação, usada sob o pretexto de garantir segurança jurídica, termina por distribuir a injustiça de forma seletiva. O caso do Difal (Tema nº 1.226) é emblemático.
A proposta que hoje reúne maioria no STF, liderada pelo ministro Flávio Dino, estabelece que apenas os contribuintes que ajuizaram ação até 29/11/2023 e não recolheram o tributo em 2022 seriam beneficiados pela não exigência do Difal naquele exercício.
Em outras palavras: quem pagou, mesmo discutindo judicialmente, fica sem direito à restituição; e quem não pagou, por estratégia, liminar ou sorte, é premiado com o benefício da modulação. É o tipo de raciocínio que inverte a lógica da boa-fé e da conformidade fiscal. A mensagem é perigosa: cumprir a lei vira um mau negócio.
O mais grave é que não se trata de um caso isolado. O Supremo Tribunal de Justiça, em 2023, seguiu linha semelhante no Tema nº 1.079, que tratava da limitação das contribuições de terceiros (Sistema S, Incra, etc.) a 20 salários mínimos.
Na ocasião, o Tribunal reconheceu a tese favorável aos contribuintes, mas restringiu seus efeitos apenas a quem já tinha decisão judicial ou administrativa favorável até 25/10/2023, data do início do julgamento.
Mais uma vez, quem já havia pago, perdeu; quem não pagou, ganhou. Esse padrão, de premiar a inadimplência e punir a prudência, mina a confiança no sistema, tornando as decisões imprevisíveis e arbitrárias. Em nome da “segurança jurídica”, o que se produz é insegurança permanente.
Arthur chama isso de falácia utilitarista: o discurso da segurança jurídica, na prática, serve para dividir o direito em partes, como na metáfora do rei Salomão, só que sem a sabedoria do rei bíblico. Dividir o bebê, aqui, é matar o próprio princípio da Justiça.
A verdadeira segurança não nasce da limitação do direito, mas da coerência e integridade das decisões judiciais e da certeza de que agir corretamente nunca será um erro.
Ao premiar o inadimplente, o STF cria um incentivo perverso. O contribuinte passa a entender que pagar tributo discutido em juízo é arriscado: se perder, o pagamento é definitivo; se ganhar, dificilmente será restituído.
Logo, o comportamento racional passa a ser não pagar e esperar a modulação. Essa lógica pode ser explicada à luz da teoria dos jogos, como mostram Cristiano Carvalho e Bradson Camelo em “Análise Econômica do Direito Tributário” (JusPodivm, 2025).
O sistema jurídico sinaliza que quem não paga tende a ser premiado, o agente econômico reage de modo estratégico, buscando maximizar o próprio ganho e adotando uma postura de free rider, aquele que se beneficia do esforço alheio sem contribuir.
O resultado é previsível: rompe-se o equilíbrio cooperativo entre Estado e contribuinte. O jogo, que deveria ser de confiança recíproca, transforma-se em um jogo de desconfiança e oportunismo, corroendo a legitimidade do sistema tributário.
Em vez de estimular a conformidade fiscal, a modulação deseduca o contribuinte e institucionaliza a descrença.
A justiça tributária exige isonomia, previsibilidade e boa-fé. Não é justo nem constitucional proteger quem desobedeceu à lei punindo quem a cumpriu. Ao modular dessa forma, o STF fere a confiança legítima e os próprios pilares da segurança jurídica. Como alerta Arthur Ferreira Neto, não se faz justiça cortando o direito pela metade.
E a própria teoria dos jogos, traduzida em linguagem simples, chega ao mesmo resultado: quando o sistema recompensa o comportamento oportunista, todos os jogadores acabam perdendo.
O contribuinte deixa de confiar, o Estado arrecada menos e a relação jurídica, que deveria ser de cooperação, transforma-se num tabuleiro de desconfiança mútua.
Em síntese: não há segurança jurídica possível quando o próprio sistema ensina que cumprir a lei é desvantagem. Essas decisões corroem a confiança, transformam o contencioso em estratégia e premiam o inadimplemento como virtude.
É urgente restabelecer a integridade das decisões judiciais e lembrar que a verdadeira justiça não se mede pela economia do Estado, mas pela coerência do Direito.


