“Qual é a base para a demarcação de terra indígena? A cabeça de um antropólogo”. A afirmação é da advogada sul-mato-grossense Luana Ruiz, uma das vozes mais ativas na defesa dos produtores rurais atingidos por demarcações e invasões de propriedades privadas em Mato Grosso do Sul.
Filha e neta de produtores de Antônio João – município que se tornou símbolo nacional do conflito fundiário entre indígenas e fazendeiros –, Luana construiu sua trajetória profissional a partir da experiência familiar, marcada pela ocupação da fazenda do avô em 1998.
Hoje, é referência na discussão jurídica sobre o tema e defende que o Estado brasileiro precisa estabelecer critérios objetivos e previsíveis para a definição de terras indígenas.
Na entrevista a seguir, Luana critica o atual modelo de demarcações conduzido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que, segundo ela, baseia-se em avaliações “subjetivas” de antropólogos.
A advogada, que é também primeira suplente de deputada federal pelo PL de Mato Grosso do Sul, reafirma sua defesa do marco temporal – tese segundo a qual só podem ser consideradas terras indígenas aquelas que estavam ocupadas por povos originários até a promulgação da Constituição de 1988.
Fiel ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao comando nacional do PL, Luana disse ter ficado feliz com o ex-governador Reinaldo Azambuja no comando do PL local. “Sou ordeira, respeito hierarquia e não faço política com lacração”, resume, ao confirmar que será pré-candidata a deputada federal nas próximas eleições.
Antes de tudo, gostaríamos que você contasse sua história, Luana.
Vou começar pela Luana profissional. Sou de Mato Grosso do Sul, fui para São Paulo, comecei fazendo Comunicação na PUC [Pontifícia Universidade Católica]. Depois de um ano e meio, percebi que não era o meu ambiente e fui fazer Direito na Faap [Fundação Armando Alvares Penteado].
Não adianta: a fruta não cai longe do pé. Eu sou do agro, sou de Mato Grosso do Sul, e em pouco tempo percebi que ali era o meu lugar.
E por que o Direito? Porque, muito antes, em Mato Grosso do Sul, vivi a realidade do conflito fundiário.
Os índios entraram na propriedade do meu avô em 1998, quando eu ainda estava no colégio. Fomos surpreendidos pela invasão. Sempre digo que ninguém defende uma pauta que não é sua.
Uma mãe que tem uma criança com necessidades especiais vai se engajar naquela causa; os médicos, nas suas; os policiais, nas deles; e eu, na causa do produtor rural. Não apenas por ser produtora rural, mas porque vivemos o problema da relativização da propriedade.
E qual foi esse problema, mais especificamente?
E aí, com esse problema da invasão da propriedade da minha família, quando eu vi que estava no lugar que eu não deveria. Eu percebi que não era a minha praia, e eu fui fazer faculdade de Direito por causa do problema que a gente vivia, um problema jurídico, intransponível, porque nada resolveria aquele problema.
Veja: a lei está dizendo que a terra é minha, que meu título é válido, ela está devidamente registrada e a cadeia dominial é completa, inclusive que todo o processo que deu origem ao título definitivo é correto, mas aí existe uma política pública que diz que o é meu deixou de ser.
E nessas situações, quando a gente busca socorro no Direito, parece que o Direito não lhe socorre. Dentro da lei, não passaríamos nunca por esse problema.
E então você volta para Mato Grosso do Sul e se especializa em Direito Agrário?
Meu trabalho de conclusão de curso foi “Propriedade privada e o artigo 231 da Constituição Federal”.
Formei-me em 2007; Raposa Serra do Sol foi julgada em 2008. Quando voltei ao Estado, eu, que era de Dourados e Antônio João, passei a morar em Campo Grande.
Depois de publicar um artigo no Correio do Estado, apareceu meu primeiro cliente na advocacia. Ele, que teve a fazenda invadida, no Sul do Estado, me disse que o que escrevi lhe deu esperança e por isso me contratou.
Hoje, em Mato Grosso do Sul, temos quantos litígios entre proprietários e indígenas?
É uma situação complexa. Existem várias situações. A primeira é quando há apenas um estudo da Funai. A segunda, quando o processo administrativo é judicializado.
A terceira ocorre quando há processo administrativo, com ou sem judicialização, e sobrevem uma invasão. E a quarta, quando não há estudo, nem processo, nem grupo técnico – apenas a invasão.
Por isso, é difícil dizer precisamente quantas propriedades estão em cada caso, até porque a situação é dinâmica.
E qual a estimativa?
Sim. Na situação de invasão, com ou sem estudo, falamos em média de 150 propriedades impactadas. Já quando tratamos de áreas alcançadas por processos de demarcação na Funai, são cerca de 2.500 propriedades.
A Funai constitui um grupo técnico coordenado por um antropólogo, que faz o estudo e identifica se a área é imprescindível à preservação física e cultural do indígena.
Depois, o relatório vai ao presidente da Funai, que aprova e publica o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação no *Diário Oficial da União. Nele, constam todas as propriedades afetadas. Essas coordenadas são então lançadas no sistema do Incra como “sobreposição de terra indígena”.
Mas qual é o critério objetivo para a Funai lançar no sistema, apenas o laudo assinado pelo antropólogo, não há contraditório?
Pois bem, qual é a base que a Funai usa para lançar essas informações no sistema? A cabeça de um antropólogo. Ponto final. É um antropólogo que é o coordenador do GT que resolveu fazer um desenho e falar: “isso aqui é terra indígena”. Em tese, o critério objetivo é “posse tradicional indígena”, na qual o antropólogo faz um estudo e diz que os índios viveram lá.
Nesta linha, qualquer território brasileiro, praticamente, poderia ser considerado território indígena?
Falar que a Avenida Paulista, por exemplo, na lógica indigenista, era uma terra indígena, não é apenas uma hipótese. Temos exemplos: a Funai demarcou Peruíbe, uma cidade litorânea paulista, demarcou o Guarujá [SP].
Existe um conflito fundiário em Ilhéus [BA], que pega uma parte do município. Temos até identificação de antropólogo em estudos da Funai no centro de Brasília [DF], dizendo que ali é terra indígena. Em Roraima, na demarcação de Raposa Serra do Sol, três municípios inteiros foram engolidos pela demarcação.
Estamos saindo de uma tentativa de conciliação liderada pelo Gilmar Mendes, que não teve muito êxito. O que houve? As partes não quiseram ceder?
Houve o consenso de que a Funai tem de notificar o particular antes de entrar na propriedade privada.
Houve o consenso de que os entes federados devem participar das nomeações dos técnicos para acompanhar os grupos de trabalho. O que ocorre é que todos os pontos de consenso são periféricos.
E quais são os pontos de intransigência?
Queremos que o diálogo entre antropólogos e indígenas seja gravado em vídeo, com presença de técnico de confiança do proprietário. O antropólogo escreve sua leitura, mas o produtor nunca tem acesso direto à conversa. É como um médico diagnosticar sem ver o paciente.
Mas existe uma divergência ainda maior?
Sim: o marco temporal versus o indigenato. Para nós, só pode ser terra indígena onde havia indígenas até 1988.
Não há possibilidade de recuo?
Não nesse ponto. Podemos discutir soluções alternativas, como indenizações, desde que a Funai pare de expandir as demarcações. Se continuar demarcando sem limite, não há dinheiro que pague.
E como ficou a situação da sua família, em Antônio João?
Ficou valendo a homologação de 2005, que estava suspensa pelo STF [Supremo Tribunal Federal]. O acordo prevê indenização pelas benfeitorias e, depois do pagamento, a desocupação.
O Estado pagará parte da terra nua em dinheiro e o restante em precatórios, previstos para 2026. O valor corresponde a um desconto de 80% do valor de mercado. Nestes acordos a Funai coloca você de joelho, põe uma corda no seu pescoço, uma arma na sua cabeça e uma na sua mão e fala: “vamos fazer o acordo”.
E sobre o conflito indígena em Caarapó?
O que ocorre em Caarapó é o que houve em Sidrolândia, já houve em Miranda e Aquidauana, em Tacuru, Paranhos, Antônio João, Rio Brilhante. A fazenda em Caarapó onde houve o conflito mais recente teve a demarcação não reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, com trânsito em julgado.
Não tem terra indígena lá. Tá anulado! E quem é do Direito e tem honestidade intelectual reconhece que decisão do STF com trânsito em julgado é válida. Agora, os indigenistas não têm essa honestidade intelectual e insistem que lá é terra indígena.
E possível que a Funai reavalie a área?
Não, porque neste caso é uma decisão do STF que alcançou mérito. Não foi uma nulidade por questões formais, por exemplo. Foi um julgamento com efeito material. É uma decisão da década passada.
Mas foi assim: em 2001 a Funai fez o Estudo e identificou a Guyraroká, com aproximadamente 11 mil hectares. Nesta área há várias propriedades e entre estas várias áreas está a Ipuitã, que é a fazenda que está invadida agora.
Na época desta identificação pela Funai, em 2001, os indígenas invadiram um pedaço da área. E este pedaço ficou delimitado com 50 hectares, que é o que eles chamam de aldeia hoje. E convenhamos, não é uma aldeia.
E então houve todo o processo, e o STF disse: não é terra inígena. Foram vários recursos, sempre com o resultado final negando a posse tradicional indígena.
O que houve é que, mesmo com a ação já transitada em julgado, os indígenas propuseram uma ação rescisória. Só que a existência desta ação em trâmite não causa qualquer efeito sobre um processo já transitado em julgado.
Atualmente você é a primeira suplente do PL de Mato Grosso do Sul na Câmara dos Deputados, pretende continuar no partido?
Não vou sair. Eu sou ordeira, na política, inclusive. Vou ficar, não sou de lacração e nem de ameça. Eu respeito hierarquia.
E você tem uma boa relação com o novo presidente do partido, o ex-governador Reinaldo Azambuja?
Sim. Com o Reinaldo, com o Valdemar [da Costa Neto], com o [Jair] Bolsonaro. Porque se o Reinaldo hoje é o presidente do PL, quem determinou isso foi meu [ex] presidente Bolsonaro.
Precisamos saber que existe um entendimento. Por mais que alguém possa não compreender ou não concordar, eu acredito que o Bolsonaro sabe o que faz.
Então você é pré-candidata pelo PL a deputada federal?
Sim.
*PERFIL
Luana Ruiz
Luana Ruiz Silva é advogada e mestre em Direito Constitucional Econômico. É primeira suplente de deputada federal na bancada do PL de Mato Grosso do Sul. Também é assessora especial da Casa Civil do governo de Mato Grosso do Sul.


