Desde o seu primeiro álbum, com raras exceções, é autora de todas as suas canções, compõe letra e música, mas também concebe o conceito do disco, que define a cara do show
Vanessa da Mata é uma artista multifacetada. Desde o seu primeiro álbum, com raras exceções, é autora de todas as suas canções, compõe letra e música, mas também concebe o conceito do disco, que, por sua vez, define a cara do show. Além de ter interpretado recentemente no teatro a grandiosa Clara Nunes.
Sua multiplicidade artística se manifesta em sua musicalidade polirrítmica, influenciada por uma cantoria rural mato-grossense, mas também pela brasilidade múltipla de Rita Lee, Caetano, Gil e Bethânia, que por sinal deu voz ao seu primeiro sucesso ainda como compositora, “A Força que Nunca Seca”.
Vanessa é uma artista brasileira, herdeira da pluralidade presente em nossa música, uma artista que foi construindo uma trajetória própria, única, trazendo sempre discos potentes, dançantes e muito bem-aceitos pelo público.
“Todas Elas” é um disco que traz essa Vanessa da Mata de muitas faces, de olhares diversos sobre a vida, sobre a mulher, sobre o amor. E esse olhar singular acaba nos fazendo acessar essas diversas possibilidades em cada uma de nós. Feito aquelas bonequinhas, uma dentro da outra, esse disco vai desdobrando essas diversas mulheres que vivem em cada mulher. Somos todas, somos uma. Somos múltiplas, desdobráveis, como já disse Adélia Prado.
“Esperança”, música de trabalho do disco, traz uma mulher madura, que já sabe o valor de cada gesto, por mais ínfimo que seja, o mais belo gesto e também o mais difícil de ser vivido. O amor que se dá no verbo amar, no exercício do amor, e não em sua posse. Não há posse no amor se não o seu exercício, a sua ação sempre aberta ao inusitado, ao incontrolável, ao mundo.
E ela diz: “Eu era capaz e não sabia desse amor maior, não sabia porque me feria com tantos nãos que a vida nos dá. As dores cristalizadas fecham nossa percepção, mas o amor me mostrou o amar. O amar que liberta, desconstrói e encoraja, incentiva, renova”. Isso está presente na música “Esperança”, mas, de algum modo, permeia todo o disco, esta capacidade de amar a vida que se conquista, quando se conquista, na maturidade.
A bela música “Demorou”, um dueto com o incrível João Gomes, começa como uma estranheza, uma tensão: a guitarra tocando no contra do reggae, em um movimento não usual e que, aos poucos, vai se encontrando, se ordenando, trazendo uma sensação de alívio, de tranquilidade, refletindo no som aquilo que a letra agrega: ali estamos diante de uma mulher que sabe viver encontros esporádicos, intensos, provisórios, sem se culpar.
Do mesmo modo que a música, a letra nos leva a amar o inusitado, o diferente. Afinal, é preciso se fortalecer nesses breves encontros para encarar a realidade muitas vezes dura do viver. “Somos adultos”, ela diz.
E tem aquela que transborda pelos lados, afinal, esse disco fala do aprendizado de uma vida que não se economiza. Vanessa da Mata não se economiza, uma mulher enorme, nos diversos sentidos da palavra, que não cabe nos modelos estabelecidos, especialmente sobre a mulher. Tudo em comum com “Maria sem Vergonha” que abre o disco.
Ela é aquela que não pode soltar sua risada, seus palavrões: não se assanhe, não se arreganhe, senão não poderá ser amada. Se manifestar o seu desejo, se transbordar, não será aceita. Mas Maria sem vergonha quer ser feliz. “O tempo não volta”, ela afirma.
Mas ela também desdobra essa mulher que ama de um jeito antigo e sofre aprisionada em uma relação abusiva. A linda interpretação de “Nada Mais”, única que não tem a assinatura da Vanessa da Mata, lida com a imensa dor de ser trocada, preterida, de saber que outra pessoa está onde você gostaria de estar, no corpo, no coração de alguém. Afinal quem nunca?
Mas ela traz também a que, enfim, se olha de fora, vendo a vida até aí vivida, e tem a coragem de ir embora e nunca mais voltar, se livrando de vez daquela dor. Sim, é preciso falar sobre as coisas mais difíceis de serem ouvidas, de serem ditas.
Essa música lembra uma folia, uma congada, com violas, e traz um interior sofisticado musicalmente, para fazer valer essa mulher que não quer mais estar no mesmo lugar, vivendo um ciclo viciado. Ela precisa ter coragem pra viver.
Em “Me Adora, Mas”, ela expõe esse laço esquisito com um conquistador compulsivo, que quer, mas não quer, que não explicita, que joga, se esconde. E em uma bela parceria com o talentoso Jota.pê nessa música leve e simples, “Troco Tudo”, essa mulher quer viver esse amor com beleza.
E, em “Quem Mandou”, essa mulher que lutou para manter um relacionamento vê de um modo distinto tudo o que viveu: chegou da boemia dizendo que a nega tava aqui pra te servir. Mas não tá mais não meu amigo. Agora não adianta chorar pra voltar.
E ela luta, sempre, porque carrega em si essa mulher severina, uma referência à força da mulher brasileira em “Morte e Vida Severina”, aquela que vive a luta diária pela sobrevivência, pela dignidade humana em sua “Ciranda”. Mas ela também desdobra essa mulher que, enquanto luta, se diverte, dança. “É por isso que eu danço/danço canto e vivo/danço mesmo comigo”, e segue levando todo mundo a dançar junto.
O disco também traz uma declaração de amor ao Brasil e ao jazz, no suingado samba jazz “Um Passeio com Robert Glasper pelo Brasil”. Esse jazzista que figura como uma das principais apostas do jazz é apresentado à musicalidade brasileira e ao seu saber viver. Além da necessária “Eu Te Apoio em sua Fé”, que fala da violência contra cultos religiosos de matriz africana manipulada por aqueles que exploram em nome da fé, impondo um Jesus de horror. “Intriga de quem lucra com os seus e quanto mais se fragiliza, mais o medo paralisa”.
“Todas Elas” é enfim um disco maduro tanto em seu conceito bem amarrado, que a cada música reforça e refaz o que está sendo dito, alinhando em uma as diversas faces dessa mulher, quanto em sua musicalidade cada vez mais própria e consistente. Uma música forte, que marca presença, como a própria Vanessa da Mata, suingada, rítmica e melódica como é a brasilidade que ela tanto honra e admira. Sejam bem-vindas “Todas Elas”.