Paulo Saldiva integra a Academia Nacional de Medicina (ANM), é pós-doutor e titular do Departamento de Patologia na Universidade de São Paulo (USP) desde 1980. Ele concentra sua pesquisa em áreas da saúde e se dedica para entender como as mudanças climáticas têm gerado impactos nas pessoas, seja de forma direta ou indireta.
O médico busca conectar pontos entre a Medicina e outras ciências para entender a fundo como enfrentar situações extremas prejudiciais para a saúde, por exemplo, os grandes incêndios florestais que atingiram Mato Grosso do Sul em 2024.
Durante o evento Esse Tal do Efeito Estufa, promovido pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS) e que integrou a agenda oficial do Rio Climate Action Week, o especialista concedeu entrevista ao Correio do Estado, bem como abordou uma discussão sobre os desafios de enfrentar as mudanças climáticas em um bate-papo ainda formado por Thelma Krug (líder do comitê científico da COP30), Eduardo Assad (professor da FGV), o multiartista Criolo, e a ativista climática e campeã de juventude da COP30, Marcele Oliveira.
De acordo com o médico, o planeta enfrenta um desafio que vai além dos efeitos climáticos e envolve efeitos na humanidade.
Com um processo em diferentes estágios ligados à ignorância das pessoas, seja ela voluntária ou involuntária, é preciso que haja mais cidadania, redução das desigualdades, sentimento de humanidade coletiva e discussão de pontos e temas realmente relevantes para que alguma mudança para melhor ainda seja aplicada.
Para explicar todo esse contexto complexo, Saldiva faz diferentes conexões e destaca que cria essa didática para tentar aproximar as pessoas da ciência, mas também a ciência das pessoas.
Como o senhor analisa a situação dos incêndios florestais para a saúde das pessoas?
Vimos que houve um cinturão de fogo [incluindo Mato Grosso do Sul] que está fazendo com que seja uma região onde mais está ocorrendo aumento da temperatura, a geografia dos animais está sendo alterada. Aumento do risco de raiva, sarampo, coqueluche. É o apocalipse ocorrendo. Ainda tivemos muita fumaça, gafanhotos ao extremo.
O senhor pode destacar, na prática, como situações como a estiagem extrema, a baixa umidade, condições que são identificadas em Mato Grosso do Sul, podem aumentar o risco de morte ou de doenças nas pessoas?
Esse líquido que reveste as vias áreas das pessoas fica desidratado e não consegue filtrar as bactérias que causam doença. E o rim, que talvez não esteja muito bom, na hora que ele precisa trabalhar em dobro – lembra quando a urina fica escura quando você desidrata? – e pode resultar em uma doença renal, ou uma bactéria que esteja por aí pode subir e resultar em uma infecção renal. É disso que as pessoas morrem.
Aí pode aparecer a causa como infarto, AVC, e outras. E não sou eu quem está dizendo, isso vem do técnico de autópsia. Nós temos um serviço que faz entre 40 e 45 autópsias por dia de morte morrida. Quando temos um pico de temperatura, o técnico já diz: ‘amanhã vai ser duro’. Aí você passa de 45 para 75. E quem vai morrer? Idosos, porque o termostato quebrou, digamos. E mulheres são mais vulneráveis.
Será que já vivemos o caminho para o “fim do mundo”, digamos?
Já existe evidência de sobra para se tratar a questão de forma terapêutica. É preciso ter um acompanhamento. Não será um engenheiro quem vai resolver a questão [das mudanças climáticas]. Não é igual aos filmes, que vem um meteoro, e atinge um lugar. Os cientistas já estão avisando tem um tempo. Não vivemos em um filme de Hollywood.
Uma coisa é, tem algo que está melhorando e pego carona em algo que a Telma comentou: eu assisti ao Woodstock quando tinha 14 anos e a minha geração ficou rabugenta porque se frustrou. Já estou completando meu curso de furar a bola de criança quando cai [no meu quintal]. Essa é para a nota máxima.
Quando o laboratório que estudava doenças ambientais na faculdade de medicina foi montado, chamavam a gente de romântico ou tonto. Mas isso já deixou de ser isso.
Acha que faltam evidências científicas para que ocorra um combate melhor das mudanças climáticas, e melhor compreensão das pessoas?
Eu não acho que faltam evidências. Talvez a velocidade [que a ciência trabalha] não seja aquela que a gente espera. Falar que precisa buscar novas pesquisas é procrastinar medidas que são necessárias. O que precisa acontecer é um mutirão [de ações e engajamento popular].
Só vai acontecer algo se houver um apoderamento pela sociedade. Você acha que a indústria do cigarro não sabia que aquilo fazia mal? [Depois de haver mobilização social, o cigarro comum passou a ser negativamente taxado].
Então, agora surgiu o cigarro eletrônico, e como o carro elétrico é o cigarro eletrônico da indústria automobilística [proposta de solução que continua gerando poluição, porém mais concentrada na sua produção – exploração de lítio, cobalto, níquel, grafite e manganês só para as baterias do que no uso de combustíveis].
Será que estamos atingindo um ponto em que os efeitos estão sendo mais sentidos pelas pessoas, o que poderia gerar alguma mobilização?
[As mudanças climáticas] vão mudar não só a temperatura como a fragilidade do receptor, que somos nós. Também estamos vendo a população [ficar] mais velha. Outra situação é que a desigualdade está aumentando também. Temos a temperatura [mudando e aumentando, o que gera problemas de saúde] e a fragilidade do receptor [também aumentando, com a desigualdade e as pessoas ficando mais velhas].
E por que eu falo que a saúde precisa ser o centro da discussão [sobre mudanças climáticas]? Porque todo mundo tem medo de morrer. Por exemplo, eu não sou contra o urso polar, nem a tartaruga. Inclusive, eu tenho uma tartaruga, eu gosto.
Ela cura asma, e eu sou asmático, a tartaruga pega ‘mal-olhado’, pega tudo e leva para o casco, aprendi isso com uma mãe de santo, mãe de um técnico do SVO – serviço de verificação de óbito –, em São Paulo. Ou seja, não são essas espécies [urso polar, tartarugas, e outros animais] que fazem o consumo [da energia e reservas do planeta] igual ao que o ser humano faz.
Veja São Paulo, se você dividir o número de habitantes por área verde, vai ver que onde tem habitante não tem área verde, e onde tem área verde não tem habitante. Imagine isso como aquele careca que faz toda uma arquitetura capilar, puxando o cabelo daqui para lá, para tentar fingir que tem a ‘cobertura’.
Mas, afinal, como a ciência pode ajudar nisso?
Captar a inteligência coletiva é fundamental, a ciência tem seu papel, mas tem suas limitações, tem um tempo diferente. Falta apoio para a representatividade talvez.
A transformação para mudanças estaria onde?
Eu acredito que há um sofrimento e a natureza tem trazido alguns ‘powerpoints’ muito claros e mostra que ela tem um poder de transformação. Por exemplo, a peste bubônica, as grandes pandemias como a Covid tiveram um papel de transformação. Esse é um aspecto que leva a usar o sofrimento para tentar endireitar a vida.
Já vi mais gente querendo melhorar na vida depois de sair da UTI do que de pessoas indo para a igreja. Outro ponto é fazer uma mobilização política, estudar profundamente a disseminação da ignorância.
E como seria esse estudo da disseminação da ignorância?
Temos que fundar a epistemologia da ignorância. Não que ela seja ruim. Entenda, ver o que a gente não sabe pode nos levar a descobrir algo. Os cientistas têm muito do poder criativo do artista, enquanto o artista busca nexo entre as coisas e sentimentos sem precisar ser na realidade, o cientista tem que fazer a ligação de pontos como CO2, temperatura, clima só que submetidos à realidade dos números que vamos usar.
O processo criativo é o mesmo, só o substrato que é diferente. A ignorância é circunstancial, veja, quando a gente fez essas cidades e fomos atropelando tudo, a Medicina talvez tenha feito pior.
O prêmio Nobel de 1949 foi a lobotomia frontal para controle de distúrbio de comportamento [técnica que cortava conexões neurais na parte frontal do cérebro para tratar doenças mentais como a esquizofrenia – chegou a ser identificada como uma cura milagrosa, porém causava efeitos negativos que superavam os benefícios]. Foi uma ignorância.
Se você pegar a ginecologia escrita por homem em 1910, você verá algo também.
E quais são os tipos de ignorância?
Tem a circunstância dogmática, que significa: o que está neste livro é o suficiente. Tem a ignorância que a gente procura, aquela que a pessoa chega em casa e não quer saber de nada, vai procurar um filme do James Bond. Mesmo sabendo que tudo é mentira, não quer saber de nada. Essa é uma ignorância protetora.
Qual ignorância precisa ser combatida?
A ignorância que precisa ser combatida é aquela que você sabe que o que você está falando é mentira, mas pregoa como verdade. Essa pode existir por cobiça, por vaidade, por preconceito.
E seria a ignorância da desinformação?
Não, a desinformação é uma ignorância legítima, aquela que a pessoa tem o direito de ter ao não ter o direito da informação [correta], é aquela que se situa assim: eu tenho o direito de ser ignorante ao ser exposto a uma informação. Mas quando você tem o direito da informação, você exercita dois fatores fundamentais: a simulação, que é você dizer o que você não é e fazer os outros tentar ver o que você não é; e a dissimulação, que é esconder o que você não é.
Onde estão as ferramentas para combater isso?
Eu acho que não está mais na ciência essa questão. Com as mudanças climáticas, por exemplo, nós já sabemos muita coisa do que precisa ser feito. [A ferramenta para combate] está nas Humanidades, está nas ciências humanas, na comunicação, na discussão de temas centrais, na compaixão. Senão, vamos entrar em um dilema que já existe na Medicina: todo o avanço feito acaba servindo mais para quem pode pagar por ela e não para quem precisa.
Uma questão nisso é: vamos salvar as espécies que mais estão ameaçadas ou vamos usar o índice Forbes para salvar alguém. Essa é uma questão central. Então caímos na questão da desigualdade, que temos a criação de uma condição política que acaba legitimando algo questionável. No Congresso, temos uma diarreia verbal, uma demonstração da precariedade do sistema democrático.
O sistema democrático é o melhor que temos, mas estamos muito mal representados. Mas, e quem elegeu? Fomos nós. Esse tema não é uma discussão só da ciência, da falta de comunicação, é algo que as pessoas precisam discutir.
O Criolo mencionou algo muito importante: como a pessoa que precisa sobreviver e quais escolhas ela vai ter se a preocupação dele única é saber o que vai comer no dia seguinte, e saber onde vai esconder da chuva. É algo para se pensar como um cidadão.
PERFIL
Paulo Hilário Nascimento Saldiva
Professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Há mais de 35 anos, pesquisa os efeitos da poluição do ar no ambiente e na saúde, incluindo estudos experimentais, epidemiológicos e clínicos. Mais recentemente, tem se dedicado a estudos sobre os efeitos de clima e das emissões de queimadas sobre a saúde humana.




