Ao longo de 40 anos, navegando pelo Pantanal, aprendi dia após dia a respeitar essa gente que há quase 300 anos habita a região: a gente pantaneira. Em seu livro “Pioneiros”, Abílio Leite de Barros tenta definir a saga de coragem da chegada ao Pantanal, e assim descreve: “Não queriam ser heróis, tampouco tinham ideia do épico”. A ocupação de um território equivalente a vários países se deu de forma pacífica. Marcado por coragem, determinação.
Entendendo as dimensões e a força da natureza, especialmente das águas, um pacto foi estabelecido: o respeito aos limites. Esse pacto é respeitado por gerações, que vêm usufruindo do que o bioma e suas características podem oferecer. Não ousaram, derrubando, modificando e transformando as paisagens em um padrão homogêneo, sem cores e diversidade.
A vida silvestre ali existente, com suas cores, ajudaram a embelezar a casa-sede das fazendas. Não eliminaram a vida silvestre pela clareza de que cada espécie compunha uma paisagem rica e única. A sobrevivência pessoal e econômica era fruto de uma perseverança e coragem em harmonia com o lugar.
Esse processo não ocorreu em outros biomas, a exemplo da Mata Atlântica, onde a voracidade humana com sua ambição destruiu mais de 80% da sua condição original. No Pantanal, o resultado de uma ocupação respeitosa nos permite, hoje, ter mais de 85% original, íntegro.
Esse mérito de um bioma conservado vem sendo reconhecido, e nos últimos 40 anos inúmeras titulações foram conferidas: Patrimônio Nacional na Constituição de 1988, Patrimônio Natural da Humanidade, Reserva da Biosfera. Mas esses méritos não se traduziram em benefícios à gente pantaneira. Até hoje a energia elétrica é um desafio, bem como a comunicação, as estradas, as escolas.
Nunca houve uma política pública direcionada, como subsídios, linhas de crédito especiais, construção e manutenção de escolas rurais. O pantaneiro assistiu, também, a ocupação do planalto e o seu enriquecimento às custas de impactos, oriundos dos assoreamentos, como o desastre do Rio Taquari. Muitos se sentiram usados como personagens nas fotos e nos vídeos de uma paisagem, e a cada grande matéria, ou campanha, ou discursos, persistia o abandono.
Um sábio pantaneiro me narrou uma passagem, após uma importante visita de um jornalista, onde após apresentar os desafios da sobrevivência no Pantanal, ao retornar para sua cidade, ele escreve uma linda matéria sobre um “João Pinto” que o encantou durante a visita. Disse o pantaneiro, decepcionado com a matéria: “Acho que, ao retorno, eles sofrem de disfunção cognitiva…”.
Os poucos sobreviventes carregam na pele as cicatrizes do sol quente, forjados na lida, nas comitivas eternas. Foi a maturidade política atual, um biólogo e a capacidade de diálogo entre atores que habitam ou atuam no Pantanal que permitiram um avanço histórico por meio da Lei do Pantanal, em 2024, com a criação do Fundo Pantanal. Uma legislação moderna e harmônica aos interesses de produção e conservação.
Com a regulamentação do fundo, agora finalmente as boas e tradicionais práticas serão valoradas. Ao mesmo tempo, oportunidades como o crédito de carbono pagarão pelas cordilheiras. Já o crédito de biodiversidade pagará pela onça-pintada. Mais do que métricas, essa gente, literalmente “ameaçada de extinção”, como descreveu Abílio de Barros, ante a sobrevivência de muitas espécies silvestres, merecem nosso respeito, nossa admiração e a inspiração de que é possível conviver para sobreviver.
Diz a música: “Cada um de nós compõe a sua história cada ser em si carrega o dom de ser feliz!” Mais do que feliz, podemos nos orgulhar dessa iniciativa fantástica e que no presente valoriza e protege o futuro. Parabéns!