Dona Santina morava entre árvores, à margem direita do rio Paraíba, no início do pequeno distrito de Campo Grande, numa casa cheia de janelas. Tinha a cara e as mãos todas franzinas e os olhos sempre esbanjando bondade. Quando faminto ia visitá-la e ela me dava cocada e tapioca de coco. Penso com saudade daquelas cocadas, daquelas tapiocas, e da cara e das mãos de Dona Santina.
Numa tarde de sol morno ela me recebeu na varanda com a felicidade borbulhando nos olhos. Contou que recebera na parte da manhã a visita do prefeito Josué de Oliveira e, este, para um evento na feira de Itabaiana, lhe encomendara dezenas de cocadas, tapiocas e beijus. A empolgação dela chegou ao auge quando mencionou que o prefeito estava acompanhado do irmão Severino de Oliveira, o SIVUCA, sanfoneiro do qual toda a cidade se orgulhava.
– Ele até tocou uma moda na sua sanfona prateada, em minha homenagem – disse sorrindo, enquanto me entregava um exemplar do Diário de Pernambuco deixado pelo prefeito.
– Ele é branco – ela continuou falando – mas tão branco que mais parece bolha de sabão, é o que chamam de albino...
Correu para a cozinha largando em meu colo o jornal que, ansioso, abri e logo na segunda página estava a reportagem completa da fantástica carreira musical de SIVUCA – apresentado pelo articulista como um dos maiores artistas do século XX, responsável por revelar a amplitude e a diversidade da sanfona nordestina no cenário mundial da música, tido como multi-instrumentalista, maestro, arranjador, compositor, orquestrador e cantor.
Interrompi a leitura para saborear as guloseimas trazidas da cozinha. Dona Santina, bondosa e generosa, notando meu agudo interesse pela leitura, não se fez de rogada e ordenou:
– Gostou do jornal? É seu, leve-o para sua casa.
Naquela noite, sem deixar escapar uma só palavra do jornal, aprendi que SIVUCA nasceu no dia 26 de maio de 1930, em Itabaiana, Estado da Paraíba, e como sanfoneiro estava contribuindo para o enriquecimento da música brasileira, ao revelar a universalidade da música nordestina e a nordestinidade da música universal. Estava sendo reconhecido mundialmente por seu trabalho, incluindo, entre suas composições, dentre outros ritmos, choros, frevos, forrós, baião, blues, jazz e até música clássica. Havia ganho a sanfona do pai em 13 de junho de 1939, num dia de Santo Antônio, aos nove anos. A partir daí, a inseparável companheira o levaria para mundos desconhecidos. Aos 15 anos, ingressou na Rádio Clube de Pernambuco, em Recife. Em 1948, já era apontado como o maior sanfoneiro do nordeste.
Segundo o jornal, SIVUCA gravou o seu primeiro disco em 78 rotações, pela Continental, em 1951, com "Carioquinha do Flamengo" (Valdir Azevedo, Bonifácio de Oliveira e Zequinha de Abreu). Nesse mesmo ano, lança o primeiro sucesso nacional, em parceria com Humberto Teixeira, "Adeus, Maria Fulô". Transferiu-se, em 1955, para o Rio de Janeiro e, no ano seguinte apresentou-se, com estrondoso sucesso, na Europa (Portugal, Espanha e França), sendo, em 1959, considerado o melhor instrumentista do momento pela imprensa parisiense. Residiu em Nova Iorque, onde fez arranjos para músicas notáveis de cantores americanos, excursionando pelo mundo, abrilhantando eventos e divulgando, no mais alto estilo, a já aplaudida música brasileira.
Compôs trilhas para os filmes "Os Trapalhões na Serra Pelada" e "Os Vagabundos Trapalhões". As composições sinfônicas de Sivuca são absolutamente singulares na música erudita brasileira, porque o artista inseriu a sanfona como instrumento principal de sua obra. Um dos LPs mais emblemáticos de sua carreira é o "Sivuca Sinfônico", em que ele toca ao lado da Orquestra Sinfônica de Recife sete arranjos orquestrais de sua autoria, um registro inédito, único e completo de sua obra erudita. Gravou também "Sivuca – O Poeta do Som", que contou com a participação de 160 músicos convidados. Foram gravadas 13 faixas, além de suas reproduzidas em parceria com a Orquestra Sinfônica da Paraíba.
A reportagem finaliza dizendo que uma das músicas gravadas por Sivuca e que traz por título "Feira de Mangaio", estilo forró, é a mais dançada, ovacionada e tocada nas rádios dos estados nordestinos.
Até hoje guardo aquela luminosa reportagem.
Notas: 1ª - Sivuca faleceu em 14 de dezembro de 2006, em João Pessoa, capital do Estado da Paraíba; 2ª - Esta crônica faz parte do livro autoral "ITABAIANA – Deslumbramento de uma Época" – no prelo, p/ Life Editora.
Reginaldo Alves de Araújo