Quando morreu, aos 46 anos (1951), havia se passado pouco mais de seis meses da publicação de seu livro (1949). Ele jamais poderia imaginar que 51 anos depois, sua ficção estaria metaforizada em um programa televisivo. O inglês (nascido na Índia), Eric Arthur Blair, sob o pseudônimo de George Orwell, certamente, não poderia prognosticar esse futuro. Cinco décadas depois (1999), inspirado em Orwell e sua obra, um executivo de TV reuniria e confinaria seres humanos com vistas a mais execrável exposição pública. Pessoas como nós seriam concupicentemente sequestradas, deixariam todos os seus afazeres – amores, carreira, estudos, trabalho – e, por um determinado período de tempo e de vida, abdicariam de seu direito à privacidade, conviveriam na mais completa intimidade, submetidas a torturas bizarras, em troca do mais vil dos metais. Estava lançado no mundo um dos maiores sucessos na área do entretenimento que a arena televisiva proporcionaria. Sabe-se que, o sucesso alcançado no Brasil foge a qualquer parâmetro internacional. Aqui, entrou para o calendário nacional e, fatidicamente, em todo janeiro, lá estamos nós submetidos a mais uma versão do Big Brother- Brasil, já que sua apresentação extrapola a mídia e a emissora que lhe dá vida. É inevitável, mesmo que não queiramos, mesmo que o rejeitemos e resistamos, em algum lugar a repercussão do programa nos atingirá. Em tempos de décima temporada do programa, vale a pena observar uma curiosidade. Em sua obra, 1984, Orwell concebe a idéia de um tipo de comportamento distópico (utopia negativa) humano: o duplipensar - capacidade, segundo a qual é possível ter e conviver com pensamentos absolutamente antagônicos. Seria isso uma característica humana: aceitar duas crenças contraditórias como verdades, sem conflito e qualquer julgamento lógico, ou ético. O que Orwell talvez não soubesse é que sua proposição seria comprovada muitos anos depois por uma sociedade tão distante da realidade dos regimes totalitários insurgentes daquele momento que quis retratar. Obviamente, não estava incluso em sua formulação que a submissão a um sistema tão opressivo – tal como denuncia - fosse aderido (e admirado) por livre iniciativa, tendo como móvel o dinheiro; a notoriedade. Seu romance-ficção exponencia a fraqueza humana, alude a impossibilidade de se resistir à força. Winston Smith – seu antierói – vivencia essa arrasadora realidade: sua quixotesca capacidade de resistência ao status quo dominante terá um limite. Surpreendente mesmo é a constatação de que o duplipensar tenha se tornado tão comum, em nossos dias. Pois, por mais que (cabeça boa!) tenhamos formado opinião da nefasta influência do Big Brother, parte de nós não deixa de assistilo. Famílias reúnem-se frente à tevê, movidos pelo interesse de acompanhar aqueles espécimes que bem poderiam ser qualquer um de nós, torcendo por uns e odiando outros. Parte de nós, que nos julgamos capazes do discernimento de pensamentos nobres, consciência crítica e conduta reta, submete-se, voluntaria e fielmente, à escravidão diária de acompanhar o maior espetáculo e exemplificação de inexistência de valores ético-morais que, no horário nobre, invade as salas de nossas casas e ensinam nossas crianças - sob a concupiscência dos adultos - a aprenderem que tudo vale a pena se os fins são recompensadores. E esse modelo distópico passa, então, a fazer parte do cotidiano das pessoas que, sem mesmo se darem conta, pagam e contribuem com a incomensurável quantia que sustentará a produção desse espetáculo e a premiação do escolhido. Estamos diante de um triste espetáculo da arena romana. Os leões somos nós; despudoradamente, as vítimas serão vencidas e eliminadas sob nosso estertor; sangrarão sob nossas garras no teclado dos celulares e computadores; suas entranhas estarão expostas para nosso vil prazer eletrônico. O concorrente mais invertebrado, mais adaptável ao sistema e às regras permanecerá, o mais dissimulado ocultar-se-á entre os demais e o melhor jogador levará um-milhão-e-meio-dereais (!) para casa. A emissora embolsará dezenas de milhões, patrocinadores e marketeiros comemorarão e o sistema de telefonia móvel exultará, enquanto nós, os subsumidos, continuaremos a contar nossos caraminguás, de todo final de mês. Alguns dos concorrentes conhecerão o sucesso, outros – maioria- serão esquecidos. Despidos, tornar-se-ão capas de revistas, destaques de escola-de-samba, protagonistas de novelas. Tudo decorrente da abdicação da privacidade e da exposição consentida, disputada, negociada sob nossos vigilantes olhares. Para que trabalhar, para que estudar, para quê?! Como é que podemos conciliar nossos valores com esse dulipensar? Como continuar exigindo que nossos filhos vão a escola todas as manhãs, se no exercício diário da prática educativa-familiar, todas as noites, sob nosso consentimento, aprendem que vale tudo para vencer a inocente disputa por um milhão e meio de reais? Talvez houvesse um utópico recurso para se coibir o espetáculo dantesco proporcionado pelos enjauladossequestrados e seus carcereiros; o simples gesto do desligar de botões, ou o zapear do controle remoto em busca de melhor programação; quem sabe, a leitura sadia de um livro (talvez a própria obra de Orwell); a resistência e a luta pela preservação da nossa sanidade mental. Não, Eric Arthur Blair não poderia ter feito um prognóstico tão acertado. Do túmulo talvez se surpreenda e lamente ter inspirado a revelação dessa capacidade insidiosa do duplipensar humano, que revela e expõe muito mais quem, do recesso dos seus lares, assiste, e torce, e paga, e escolhe, e vota, do que o triste espetáculo oferecido pelos sequestrados – confinados – encarcerados – aliciados - vencidos e vendidos no circo romano nosso de cada dia. O fato (basta verificar a audiência) é que poucos de nós são capazes de resistir a hegemonia global-orwelliana, e, simplesmente, conseguem dizer não ao Big-Brother. Parece pouco, mas não é; podem parecer bobos, mas não são, pois nem só de pão e circo pode viver o homem. Há mais o que se fazer das nossas horas que se escoam a cada minuto de vida desperdiçado.