Depois de uma estreia apoteótica em março de 2024, mobilizando o desavisado público de três dos maiores terminais de ônibus da cidade e lotando o Armazém Cultural por quatro dias seguidos, com 12 apresentações (Ryan Keberle, Katie Thiroux, DDG4, Urbem, etc.), parecia que este ano chegaria ao fim sem a segunda edição do Campo Grande Jazz Festival (CGJF). Mas que nada. De repente, com dezembro já correndo a mil pelas folhas do calendário, eis que a produção do evento estampa no Instagram as datas da segunda edição: do dia 17 ao dia 21.
E assim foi. Diante de uma greve histórica que paralisou, por quatro dias, os ônibus coletivos da Capital, da ameaça de chuva e de um orçamento bem enxuto – beirando a linha do chamado “no budget” – captado por meio da Política Nacional Aldir Blanc (Pnab), perseverou a paixão pelo jazz e uma elogiável capacidade de articulação de uma equipe raçuda e sorridente, que teve à frente Franciella Cavalheri e Adriel Santos. O resultado foram cinco dias seguidos de apresentações gratuitas e uma adesão cada vez maior do público.
Como a proposta do CGJF era levar o jazz literalmente para a rua – incluindo os terminais de ônibus Bandeirantes, General Osório e Morenão – em todos os dias do evento, a exemplo de parte da programação de 2024, a greve iniciada no dia 15 foi uma pedra no caminho, da qual a produção buscou desviar por meio de uma mobilização junto à prefeitura, para que fosse autorizada a montagem da estrutura em outros locais de afluxo, e de uma afiada e permanente comunicação com o público, uma vez mais, via Instagram.
Se houve corre-corre e perrengue nos bastidores, o jazz em alta potência, no palco e na energia da plateia, compensou – e com folga – os transtornos. Músicos invariavelmente de alta cepa estabelecendo a vigorosa e estimulante comunhão de autênticas jam sessions ao revisitarem um repertório de respeito, que, a cada dia, foi revelando e (r)estabelecendo as pontes multifacetadas que retroalimentam, já há tempos, a arte musical brasileira e dos EUA.
Uma das coisas mais incríveis de se ver nesse jogo de belezas que a troca entre os instrumentistas e a espontânea expressão da música proporciona é a reação do público aparentemente mais leigo, que, por meio de interjeições faciais e perguntas sobre “o que está acontecendo”, demonstra não frequentar as playlists do jazz, mas, em poucos instantes, abre sorrisos, fecha os olhos, cutuca quem está do lado, dança e viaja. Para o performer no palco, aí está a senha para triangular olhares com a banda e o público.
Daí a jam deixa de ser um show apresentado no formato palco-plateia para se tornar um espetáculo em que o espectador assume a condição de integrante da cena, numa interação de escuta, curtição e feedback a gerar um crescendo que parece não ter fim. A cada arremate dos temas tocados e/ou cantados, o volume de aplausos e uivos é prova dessa sintonia tão rica. Tesouros não faltaram nesse sentido, fazendo deste segundo CGJF tanto uma celebração para o connoisseur quanto para o viajante de primeira viagem.
QUARTA-FEIRA
No primeiro dia de festival, o esquema mudou do Terminal Bandeirantes para a Rua Barão do Rio Branco, bem próximo à esquina com a Rua 14 de Julho, em frente à boutique Le Moulin. Bianca Bacha (vocais), Gabriel Basso (contrabaixo), Ana Ferreira (teclados), Adriel Santos (bateria) e Junior Matos (sax) comandaram o som, pilotando desde “Take Five”, “Take the ‘A’ Train” (quase uma ironia com a greve de ônibus) e “Autumn Leaves”, do baú norte-americano, às standards brazucas, como “Chega de Saudade” e “A Rã” (essa com o promissor João Pedro Ortale assumindo as baquetas). A festa só estava começando.
QUINTA-FEIRA
A greve seguia. E a cena programada para o Terminal General Osório se deslocou apenas poucos metros da calçada da Le Moulin, migrando para a esquina da Rua Barão do Rio Branco com a Rua 14 de Julho. Ali, quem esteve à frente da jam foram Leo Cavallini (vocais/sax barítono), Juninho MPB (vocais/baixo acústico), Junior Juba (teclado) e Matheus Yule (bateria). O “efeito esquina” com a centenária Rua 14 de Julho, coração do comércio de Campo Grande, contou muito para dar um grau na apresentação. Criancinhas, marmanjos e que tais compreendendo como a jazz music abraça a alma. E os músicos em ponto de ebulição.
Mais brilho, com um dos transeuntes sendo apenas o crooner Mauro, veterano da Banda Lilás, que mandou uma precisa interpretação do clássico “Só Danço Samba”, e Cavallini mandando uma sequência matadora de standards – por exemplo, “Georgia On My Mind”, “There Will Be Another Will” e “Summertime” – que foi finalizada com “Cantaloupe Island”, um dos maiores petardos do gênio Herbie Hancock.
SEXTA-FEIRA
Finda a greve, finalmente, o último terminal previsto (Morenão) recebeu os músicos do lineup escalado – Adriel Santos (bateria), Gabriel Santos e Giovani Oliveira (sax tenor). Os bateristas João Pedro Ortale e Marcos Loyola também apareceram para fazer um som, mas a tarde/noite foi mesmo de Giovani, esse gigante do sax que veio parar em Campo Grande pela sua carreira nas Forças Armadas e que, desde junho deste ano pelo menos, quando deu uma canja no show da Urbem com Ryan Keberle, vem se consolidando no circuito jazzy de Campo Grande como presença obrigatória. Ali o sopro se soma ao espírito para revelar a melodia. Só vendo.
SÁBADO
Daniel D’Alcantara (trompete), Felipe Silveira (teclado), Gabriel Basso (contrabaixo), Marcela Mar (vocais), Adriel Santos (bateria) e Giovani Oliveira (sax tenor) se apresentam na Praça Ary CoelhoLocação mantida conforme a programação inicial, o palco foi armado na Praça Ary Coelho, extramuros da festa de Natal da prefeitura, conforme o desejo da curadoria do CGJF. Foi o dia de vermos os convidados da cena de São Paulo marcarem presença – Daniel D’Alcantara (trompete) e Felipe Silveira (teclados) – ao lado da cozinha do El Trio – Adriel na bateria e Basso no baixo. Daniel e Felipe trouxeram ainda mais sofisticação e potência para a jam, interagindo incrivelmente com as performances vocais de Marcela Mar, cada vez melhor, e do crooner Leo Cavallini. Falemos um pouco mais da dupla de São Paulo logo a seguir. O lance do Natal dentro das grades, com luzes, pipoca e o público recalibrando o passeio a partir do que via e ouvia na entrada na praça, é um instante de magia que justifica a experiência.
DOMINGO
A agenda começou por volta das 11h. Daniel e Felipe bateriam um papo com os presentes e fazer um som com os músicos que aparecessem. O primeiro, trompetista, compositor, professor, integrando as formações de João Donato, Roberto Menescal, Ivan Lins, Leny Andrade, Joyce Moreno, Rosa Passos e Milton Nascimento, entre outros nomes, desafia o predicativo de “apenas” um sideman perfeito.
Daniel D’Alcantara no trompete, Felipe Silveira no teclado e Gabriel Basso no contrabaixo durante workshop na manhã de domingoFelipe, da mesma forma, acompanhando ases ou em projetos como o Collectiv do Brasil (ao lado de Ryan Keberle, Felipe Brisola e Paulinho Vicente), que teve o álbum “Choro das Águas”, um tributo a Ivan Lins, entre os melhores deste ano pela lista da DownBeat, encarna uma essencialidade da expressão musical que veio nos ensinamentos passados de forma despojada, como um bate-papo mesmo, citando de Chick Corea a Bill Evans, pontas de lança, como ele no piano, a mestres de outros instrumentos, como os bateristas Brian Blade e o brasileiro Nenê. Lição: a música precisa, sim, da técnica, mas é muito mais um estado de encontro do artista consigo mesmo e a sua verdade possível. Marcos Loyola, que estava por lá e acabou também tocando, chorou de emoção com esse encontro.
No cair da tarde, na Plataforma Cultural, o encerramento do Campo Grande Jazz Festival foi nada menos que apoteótico. Seria bom ter tido por lá agentes do poder público e de possíveis patrocínios para entender o que isso, de fato, significa. Uma pequena multidão de 300 pessoas foi se aglomerando em volta dos músicos – Adriel, Basso, Gabriel de Andrade, Felipe e Daniel na banda base, mais uma série de participações – e a gig foi crescendo sobremaneira, resultando em mais de duas horas de uma sonzeira que, uma vez mais, agregou o repertório norte-americano com clássicos brasileiros.
Eles abriram com versões avassaladoras de “Inner Urge” (Joe Henderson) e “Milestones” (Herbie Hancock) e seguiram Brasil adentro – com Milton Nascimento, João Bosco e Capinan, Leny Andrade (na verdade, “Estamos Aí”, de Maurício Einhorn e Durval Ferreira) e Gilson Espíndola nas participações, respectivamente, de Bianca Bacha, Karla Coronel, Marcela Mar e do próprio Gilson –, o que por si só já justificaria o festival. Mas teve ainda, para o grand finale, “Caminhos do Vento”, de Gabriel de Andrade, do repertório do El Trio, que mostrou a total quebra de barreiras nacionais, e estilísticas, quando o assunto é a música de dentro. E, ufa, como encantou. Que venha o CGJF 2026. Loas.


O apoio de familiares e de amigos é fundamental para que se consiga dar a volta por cima - Foto: Divulgação


