Lançada em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty tornou-se, desde a sua criação, um dos mais importantes eventos do gênero no País.
Em duas décadas, a Flip prestou homenagens tanto a medalhões das letras nacionais – a exemplo de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade – quanto a nomes que assinam uma produção de igual impacto e vigor, mas historicamente situados à margem dos holofotes, como Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst e, sobretudo, Maria Firmina dos Reis, a homenageada nesta 20ª edição.
Portanto, foi com muito entusiasmo que se anunciou, no início da semana, um feito inédito para a literatura local. Os escritores sul-mato-grossenses Fábio do Vale e Samuel Medeiros foram convidados para participar da Flip 2022, que começou ontem, no centro histórico da cidade de Paraty, no litoral sul do Rio de Janeiro, a 260 km da capital carioca.
O evento segue até domingo, com a presença de gente graúda, como a mais recente Nobel de literatura, a francesa Annie Ernaux. Essa é a primeira vez que um autor sul-mato-grossense publica uma obra dentro do circuito da Flip.
GUERRA DO PARAGUAI
Fábio do Vale participa da badalação literária graças à sua dissertação de mestrado sobre a resistência feminina na guerra do Paraguai, que virou o livro “A Voz e a Resistência Feminina na Obra ‘Senhorinha Barbosa Lopes’, de Samuel Medeiros”, lançado em 2021 pela Oyá Editora.
Pelo título já se deduz o motivo da presença de Medeiros, detentor de uma pena de alta quilometragem e reconhecimento, no certame.
A dissertação de Fábio do Vale se baseou, entre outras fontes, em um dos trabalhos mais elogiados do escritor veterano, “Senhorinha Barbosa Lopes: Uma História da Resistência Feminina na Guerra do Paraguai”, editado pela primeira vez em 2007 e já na terceira edição.
A dupla de escritores recebe o público para duas rodas de conversa, na sexta-feira (19h) e no sábado (17h), na Casa Tyiwaras Tikunas (Rua da Lapa, nº 206, Paraty).
O livro de Samuel Medeiros fala sobre a voz e a resistência feminina por meio da história de Senhorinha Lopes, mulher de Guia Lopes da Laguna, que guiou as tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai, trazendo-as para Nioaque.
Senhorinha foi presa duas vezes pelos paraguaios e ficou cinco anos presa no Paraguai com os filhos. Com a morte do marido, voltou para o Brasil e, embora fosse analfabeta, construiu um patrimônio enorme de fazendas de gado.
VIRANDO FILME
Essa personagem feminina veio de Minas Gerais com o primeiro marido. “Na época, as terras aqui não tinham dono, vieram se apossar das terras e construir fazendas no sul de Mato Grosso do Sul. Por isso, eram perseguidos, desalojados, sofriam as agruras da guerra”, contextualiza Samuel Medeiros.
“O livro é cheio de aventuras que eu pesquisei da bibliografia e romanceei. A história é verídica, mas o miolo é ficção. O objetivo é enaltecer o papel da mulher, é isso o que eu vou falar na Flip”, diz o escritor.
O cineasta Dannon Lacerda prepara um longa-metragem a partir do romance histórico de Medeiros, com Andreia Horta e Daniel Oliveira nos papéis principais.
GRATIDÃO
Professor e pesquisador, Fábio do Vale é mestre em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e doutor em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
A pesquisa que deu origem à dissertação – e ao livro – “A Voz e a Resistência Feminina na Obra ‘Senhorinha Barbosa Lopes’, de Samuel Medeiros” foi orientada pela professora Zélia Nolasco.
“Sinto-me honrado por representar Mato Grosso do Sul na Flip e pelo fato de a Fundação de Cultura do Estado estar promovendo um produto sul-mato-grossense”, diz do Vale, aludindo ao apoio da FCMS, que custeou as passagens aéreas para ele e Medeiros comparecerem ao evento.
“Gostaria de agradecer a um dos maiores incentivadores do meu trabalho e meu amigo pessoal, Rubenio Marcelo, que fez com que eu me destacasse e acreditou em mim e na inspiração do meu trabalho que vai ser lançado na Flip, a obra do escritor Samuel Medeiros”, reconhece o escritor de 40 anos.
“A gente nunca espera indicação e nunca se preocupa em projetar um material que será aproveitado pelos grandes eixos. Produzi o meu livro durante o mestrado na UEMS, residi parte da minha infância no Paraguai e, no meu trabalho, busquei entender o protagonismo da Senhorinha Lopes. Ela tinha direito de governar a fazenda como viúva e mãe dos seus três filhos”, conta o pesquisador.
SENHORINHA PIONEIRA
“Quando ela consegue a liberdade dela, ela retorna para o Brasil e o Exército brasileiro a outorga como madrinha da Bandeira Nacional. Na obra eu digo que, enquanto a Senhorinha Lopes estava sendo a voz feminina na fronteira do Brasil com o Paraguai, Josefina de Azevedo, irmã do escritor Álvares de Azevedo [1831-1852], considerada a primeira feminista do Brasil, fazia o mesmo papel no eixo Rio-São Paulo”, localiza do Vale.
“Estar no circuito Flip 2022 levando a literatura de MS, parte da história da Guerra do Paraguai e, principalmente, falando sobre literatura são motivos que não apenas me emocionam, mas que sobremaneira potencializam a cultura latino-americana nessa festa literária internacional”, resume.
CONVIDADOS
Além de palestras, mesas-redondas e debates, a Flip realiza oficinas literárias e eventos paralelos para crianças (Flipinha) e jovens (Flipzona).
Os cinco dias de programação contam ainda com apresentações musicais, sessões de filmes, saraus e jogos. Entre os autores brasileiros, está prevista a participação de: Cida Pedrosa, Cidinha da Silva, Lenora de Barros, Lázaro Ramos, Geovani Martins, Cristhiano Aguiar, Ricardo Aleixo, Bernardo Carvalho e Luiz Maurício Azevedo.
Entre as presenças internacionais estão as argentinas Camila Sosa Villada e Cecilia Pavón; a cubana Teresa Cárdenas; as francesas Nastassja Martin e Annie Ernaux; as norte-americanas Saidiya Hartman e Ladee Hubbard; a portuguesa Alice Neto; e o chileno Benjamin Labatut.
A maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a homenageada desta 20ª edição, é tida como a principal romancista negra do Brasil. Em 1859, ela publicou “Úrsula”, considerado o primeiro romance abolicionista do País.